Admito que a premissa desta coluna possa parecer estranha a um olhar do lado americano do Atlântico. Historicamente são vocês que proclamam as suas independências em relação a nós, e não o contrário.
Mas permitam-me que sirva de tradutor entre duas realidades: a Europa do futuro próximo terá pouco a ver com a Europa do passado recente. Isso nota-se, por agora, em conversas discretas nos corredores das instituições de Bruxelas.
Diz-se que os analistas militares que ainda há pouco mediam o prazo de preparação para uma hipotética guerra no continente a vinte ou trinta anos de distância falam agora da possibilidade real de um confronto direto entre a Rússia e um país da União Europeia em seis a sete anos. Mas diz-se também que, a uns quilômetros de distância, no quartel-general da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), se acredita que, se a guerra na Ucrânia acabasse hoje, Putin precisaria apenas de três anos para lançar um ataque a um aliado da Otan ou, como se diz na linguagem técnica da aliança militar, “um evento artigo 5”. O artigo 5 do tratado é o que mandata os Estados-membros a reagirem todos em caso de ataque a um deles.
Talvez tudo isto pareça fantasioso a olhares distantes; mas na Europa estas possibilidades são levadas cada vez mais a sério. A vantagem estratégica de Putin até agora tem sido a de ser capaz de pensar o inconcebível —como a invasão a larga escala da Ucrânia— enquanto os restantes europeus se limitavam a coçar a cabeça e a pensar “não faz sentido”. Agora a palavra de ordem é a da “preparação para os piores cenários”, como reza o relatório que o ex-presidente da Finlândia, Sauli Niinistö, entregou a semana passada à Comissão Europeia.
A própria União Europeia nunca tinha levado a cabo uma avaliação abrangente de todas as condições necessárias para conseguir continuar a funcionar sob quaisquer circunstâncias, mesmo em caso de ataque direto. E o relatório Niinistö desce ao detalhe da preparação individual e familiar, por exemplo no armazenamento de comida. A compra coletiva de vacinas por parte da União Europeia, durante a pandemia, é tida como um bom exemplo do valor da ação coletiva europeia. E caso o artigo 5 venha a ser posto em causa —como aconteceu durante a primeira (e única?) presidência de Donald Trump— os europeus terão muito provavelmente de voltar a uma ideia adormecida desde a década de 1950: a construção de uma Comunidade Europeia de Defesa. E aí será preciso fazer o debate difícil de um exército comum europeu, tema-tabu até há pouco tempo.
Poderíamos pensar que todo esse frenesi se acalmará caso a presidente-eleita seja Kamala Harris (escrevo, é bom de ver, antes de se conhecerem os resultados). Sim, e não. É claro que um novo mandato de um presidente Trump seria um acelerador neste processo. Mas os bloqueios da política estado-unidense, demonstrados pela dificuldade de aprovar ajuda para a Ucrânia, trazem muitos europeus convencidos de que não vale a pena olhar para trás.
Estar de quatro em quatro anos a sofrer com a decisão de um qualquer lugarejo na Pensilvânia não é vida. Chegou a altura de a Europa proclamar a sua independência.
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