Em seu livro “Autocracia S.A.”, a jornalista e historiadora Anne Applebaum se dedica a um ofício necessário: revelar as redes visíveis e as subterrâneas que conectam as autocracias entre si e o mundo democrático.
As frentes em disputa são múltiplas: política, econômica, militar, informacional. A autora não se furta a revelar os desafios, em especial, aqueles ligados ao subterrâneo. Não hesita em nomear lavanderias de dinheiro que fizeram a ponte entre o mundo autocrático e democrático nem o que chama de “lavanderias de informações”. Há uma linha que liga as empresas Xinhua, da China, Telesur, da Venezuela, HispanTV, do Irã, e RT, da Rússia, argumenta ela.
Mais: honrando sua formação, ela historiciza acordos sub-reptícios e negociatas entre o mundo democrático e autocrático; então, é possível localizar temporalmente várias das tramas espúrias que naturalizamos hoje em dia.
Para tanto, ajuda seu currículo heterodoxo entre a academia e o jornalismo americano, os corredores do poder do Norte Global (seu marido é hoje ministro das Relações Exteriores da Polônia e já foi membro do Parlamento Europeu) e a curiosidade indefectível, digna de qualquer intelectual que chegou a seu nível de reconhecimento.
O livro, no entanto, padece de graves falhas de diagnóstico, que poderiam passar batidas a uma passada de olhos seduzidos por sua escrita formidável. Uma delas é a omissão de alguns países relevantes nesse mosaico, notadamente de Israel. Applebaum omite o papel que a exportação de sua tecnologia de vigilância e balística, por exemplo, tem na confecção de teias autoritárias hoje.
Essa omissão, porém, é apenas sintoma de um problema maior: a dificuldade da autora em atribuir agência aos desmandos autocráticos diagnosticados —para além de nomear um par de empresas corruptas e as cartas de sempre, como Putin e Trump.
“Autocracia S.A.” é o epítome dessa falha. O nome, segundo a autora, serve para demarcar que os líderes autocráticos agem em conjunto para manter sua riqueza pessoal e seu poder.
Embora se pretenda literal, ele esconde muitos dos atores político-econômicos responsáveis pelas ameaças às democracias: são eles só os líderes de autocracias? Também os governos democráticos tolerantes e as empresas ocidentais cegas à origem do dinheiro que manipulam? E os cidadãos comuns que compartilham factoides?
Em vez de algo tão concreto como uma empresa, “Autocracia S.A.” vira um mito, um bicho-papão, o totem perfeito para a autora usar de subterfúgio quando a conversa começa a ficar interessante.
Não são raras as ocasiões em que “Autocracia S.A.” vira o sujeito de acusações veementes —como o uso indiscriminado de empresas de fachada, o abuso da espionagem como modelo de governança, o bombardeio de fake news e a perseguição a opositores. Com o perdão da pilhéria, Applebaum pega de empréstimo o refrão “andou na prancha, cuidado a ‘Autocracia S.A.’ vai te pegar.”
A ausência de consequências dos argumentos é outro problema. Como a autora fareja em alguns pontos, países cujas economias são dependentes da exploração de petróleo tendem a dispor de regimes políticos autoritários. Ela chega a afirmar que democracias não deveriam escoar dinheiro a essas economias fósseis e aturar seus modelos de governança.
Isso, no entanto, não a leva a tirar a consequência primeira desse argumento —o que já foi feito nos anos 2010 pelo cientista político Timothy Mitchell: o modelo que sustentou grandes democracias ocidentais desde a Segunda Guerra Mundial foi baseado no apoio a autocracias petrolíferas periféricas.
As últimas forneciam insumos básicos para manter os modelos econômicos capitalistas rodando no centro. Isso sem falar no apoio ou participação direta das primeiras em guerras obscenamente lucrativas —motivadas, é claro, pelo controle do petróleo, a exemplo da guerra do Iraque.
Toda a deriva ambiental que vivemos no momento é deixada de lado pela autora. Ela, que não economiza palavras ao condenar o ataque russo à Ucrânia, não diz uma palavra sobre as engrenagens fósseis de Putin, que destruíram os ecossistemas ucranianos a olhos vistos.
Explodiram refinarias, minaram solos, emitiram quantidades astronômicas de poluentes e entregaram mais insegurança alimentar e energética não só aos envolvidos no conflito, mas ao mundo todo.
Mesmo padecendo dessas e de outras falhas, o livro de Applebaum não deixa de ser um marco no destrinchamento das máquinas de governo dos autocratas contemporâneos. Tem ideias interessantes, que devem ser pesquisadas adiante. Só com informação e mobilização conseguiremos vencer a disputa incendiária pelas nossas democracias.