A lição de coragem por trás do referendo que tornou Timor-Leste independente – EERBONUS
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A lição de coragem por trás do referendo que tornou Timor-Leste independente

Antes do amanhecer do dia 30 de agosto de 1999, milhares de timorenses saíram de suas casas e caminharam longas distâncias. Eles caminharam no escuro e sob risco de vida para colocar em prática um ideal presente nos artigos 1 e 55 da Carta da ONU: o direito à autodeterminação.

No aniversário de 25 anos deste histórico referendo, organizado pelas Nações Unidas, as celebrações destacam a coragem do povo de Timor-Leste. A presença da ONU foi aguardada durante 24 anos de ocupação indonésia, ocorrida poucos dias depois de o pequeno país insular ter deixado de ser colônia de Portugal.

Para Ramos Horta, ganhador do prêmio Nobel da Paz em 1996, a vitória de Timor-Leste foi especialmente diplomática e política, envolvendo por um lado a preservação da identidade cultural e por outro a pressão internacional.

Espírito de luta

Em entrevista para a ONU News, na capital Dili, o líder da resistência e atual primeiro-ministro, Xanana Gusmão, disse que o movimento pela independência contava com frentes militares, políticas e diplomáticas.

“A bandeira das Nações Unidas nos inspirava em termos de lei internacional, direito de todos os povos pela autodeterminação e independência. Isto era um tipo de uma presença das Nações Unidas no nosso espírito de luta”.

Segundo o líder timorense, o referendo “foi determinante para o destino do país”.

Presidente de Timor-Leste, José Manuel Ramos-Horta, em declarações à ONU News na véspera das celebrações dos 25 anos do referendo pela independência de Timor-Leste

Ao conversar com a ONU News, o presidente José Ramos Horta declarou que a guerra contra a Indonésia era assimétrica e “impossível do ponto de vista militar”. A ocupação resultou em mais de 200 mil mortes, cerca de 25% da população timorense na época, inclusive com uso de armas fornecidas pelos Estados Unidos, como bombas Napalm, usadas anteriormente na guerra do Vietnã, afirmou Horta.

Uma vitória diplomática

Para o presidente, ganhador do prêmio Nobel da Paz em 1996, a vitória de Timor-Leste foi especialmente diplomática e política, envolvendo por um lado a preservação da identidade cultural e por outro a pressão internacional.

“Portanto, Timor foi um caso de êxito, sobretudo porque o Conselho de Segurança encontrou o consenso. Havia consenso no Conselho de Segurança. Total. Mas houve consenso porque a Indonésia já tinha aceitado, porque se a Indonésia não tivesse aceitado, e a Indonésia era muito importante para alguns países membros do Conselho de Segurança, não teria havido consenso”.

A consulta popular de 30 de agosto de 1999 teve um papel chave na intensificação da ação multilateral sobre Timor-Leste, que culminou eventualmente com a revisão da posição indonésia.

Primeiro-ministro timorense, Xanana Gusmão, disse que o movimento pela independência contava com frentes militares, políticas e diplomáticas

Primeiro-ministro timorense, Xanana Gusmão, disse que o movimento pela independência contava com frentes militares, políticas e diplomáticas

Excedendo as expectativas

De acordo com o chefe da missão eleitoral da ONU estabelecida em junho de 1999, Unamet, aquele momento foi especial, pois poucas vezes a organização teve uma oportunidade tão clara de “dar para as pessoas aquilo que elas estavam buscando”.

Ian Martin disse que apesar da presença internacional de jornalistas e 2,3 mil observadores eleitorais, atos de intimidação contra a população e ataques contra escritórios da ONU “nunca pararam”. A violência tinha origem especialmente em milicias pro-indonésia, apoiadas por Forças Armadas da potência ocupante.

Para Martin a “coragem e determinação do povo timorense” se fez sentir logo durante o processo de registro. Naquele momento, muitos timorenses já estavam deslocados e vivendo escondidos nas montanhas, mesmo assim, houve alto comparecimento e ficou claro que o número de votantes excederia o previsto.

Segundo ele, foi isso que fez a ONU, em consulta com lideranças timorenses como Xanana Gusmão, que na época estava preso na Indonésia, decidir seguir adiante, apesar dos riscos de segurança.

Ian Martin foi chefe da Unamet que supervisionou o referendo de 30 de agosto de 1999

Ian Martin foi chefe da Unamet que supervisionou o referendo de 30 de agosto de 1999

O poder da comunicação

Um dos grandes feitos da Unamet foi registrar 433.576 pessoas para o referendo em Timor-Leste em apenas 22 dias. As estratégias envolveram flexibilidades para cadastrar pessoas sem documentos e deslocados que estavam fora da sua zona de origem, mas acima de tudo abordagens criativas de comunicação.

O produtor de TV Ric Curnow, contratado pela Unamet, ficou responsável por organizar programas diários para explicar para a população o funcionamento da consulta popular, que eram realizados na língua local, tetum, além de português, inglês e indonésio.

Utilizando um quarto de hotel como estúdio, ele começou a criar programas de humor, novelas e cenas com voluntários da equipe nacional da Unamet, que tiveram muito impacto. Segundo Curnow, antes disso, “não era permitido aos timorenses verem a si mesmos como eles eram”.

Ele também compôs uma música sobre a votação que foi aperfeiçoada e gravada por um grupo musical local chamado Lahane. A letra trazia mensagens encorajadoras como: “vamos votar com alegria, a Unamet nos deu a chance de registrar nossa escolha”. A música se tornou um grande sucesso e Ric se recorda de ouvir crianças cantando-a na rua quando ele voltava de noite do trabalho.

A empolgação do dia da votação

No total, 200 centros eleitorais foram estabelecidos pela Unamet, por equipes que viajaram sem lugar definido para se abrigar ou esquemas de segurança. No dia da votação, a população se depararia com uma cédula com a opção de aceitar ou rejeitar a proposta da Indonésia de integração por meio de uma autonomia especial.

Visualmente o “sim” era representado pelo mapa de Timor-Leste com uma bandeira indonésia e o “não” pelo mapa com a bandeira do Conselho Nacional da Resistência Timorense, Cnrt.

Cédula de votação da Unamet usada no referendo de 30 de agosto de 1999.

@ ONU News/Felipe de Carvalho.

Havia grande temor de um ataque armado no dia da consulta popular. Ainda assim, Nick Birnback, que atuava na equipe de comunicação da Unamet, disse que no maior centro de votação havia “enormes filas de pessoas esperando antes do sol nascer, pois não queriam perder a oportunidade de votar.” Ao todo, 98,6% dos timorenses registrados compareceram às urnas, a maioria nas primeiras horas da manhã.

Naquele mesmo dia, no entanto, houve a primeira morte de um membro da equipe nacional da ONU, por esfaqueamento, no distrito de Ermera. Um helicóptero da ONU que levava urnas de uma das vilas para a capital foi alvo de tiros. Poucos dias depois, um comboio da ONU foi perseguido em Liquiça e atingido por 15 disparos. No final da missão foram 14 funcionários mortos ou desaparecidos.

A onda de violência após o resultado

Em meio a crescentes episódios de violência, no dia 4 de setembro, Ian Martin anunciou o resultado, que foi simultaneamente lido pelo então secretário-geral da ONU, Kofi-Anand, em Nova Iorque: 78,5% dos votos foram pela rejeição da proposta de autonomia e 21,5% a favor, confirmando assim a escolha da independência.

O ex-chefe da Unamet lembra de viver um misto de emoções. Por um lado, o privilégio de estar em uma “atmosfera de jubilo” ao acompanhar a celebração do resultado, mas por outro o temor de um ataque a qualquer minuto.

Segundo ele, imediatamente após o anúncio, “as milicias cercaram o local e começaram a incendiar construções” e, por isso, ele foi levado pela segurança para a sede da Unamet apenas “com a roupa do corpo”. Dias depois, o hotel onde o resultado do referendo foi anunciado foi saqueado e queimado.

Martin recorda que os tiroteios incessantes ao redor da Unamet fizeram com que muitos timorenses buscassem refúgio sob a bandeira da ONU, escalando os muros que tinham arame farpado. O chefe da missão eleitoral descreveu uma cena angustiante de “famílias jogando bebês por cima do muro e as equipes da ONU segurando-as do outro lado”.

Milícias pró-Indonésia nas ruas de Díli, Timor-Leste.

Milícias pró-Indonésia nas ruas de Díli, Timor-Leste.

Uma freira que salvou 800 pessoas

Bem perto dali, no convento das Madres Canossianas, a diretora do local, irmã Esmeralda, abrigava cerca de 800 refugiados, que começaram a chegar com medo da violência desde meados de agosto. Ela afirma que encorajou todo mundo a votar no dia 30, apesar dos riscos.

Após o anúncio do resultado, Esmeralda foi protagonista de um grande ato de coragem. Sozinha, ela enfrentou um enorme grupo de milicianos que invadiram o convento. A freira deu ordens para todos baixarem as armas, organizou os 800 refugiados em filas e os levou para a Unamet, cruzando a barreira de milicianos.

A religiosa ajudou a mobilizar cuidados de saúde e alimentos para os agora quase 2 mil deslocados que estavam no complexo da ONU, convertido em acampamento humanitário. O local era protegido por um cordão militar indonésio, mas não havia garantias de que as milícias seriam de fato impedidas de entrar.

Irmã Esmeralda no Convento das Madres Canossianas em Balide na cidade de Díli, Timor-Leste.

@ ONU News/Felipe de Carvalho.

Irmã Esmeralda no Convento das Madres Canossianas em Balide na cidade de Díli, Timor-Leste.

O cerco na Unamet

Nesse momento, segundo Nick Birnback, manter Timor-Leste nas manchetes era fundamental para impedir um massacre de todas aquelas pessoas, incluindo funcionários nacionais e internacionais da ONU. Por meio de um telefone de satélite que havia sobrado, aqueles que estavam sob cerco na Unamet davam entrevistas para veículos do mundo inteiro, e jornalistas ainda presentes ali enviavam suas histórias.

Com os riscos cada vez mais elevados, Ian Martin teve que iniciar um processo de evacuação das equipes da ONU. No entanto uma das mensagens mais difundidas na campanha do referendo era que a Unamet iria ficar, independentemente do resultado.

Sem meios de oferecer segurança, a presença de equipes internacionais era a única esperança para impedir um massacre. Nesse momento, Esmeralda mais uma vez ergueu sua voz e disse que não aceitava que os timorenses fossem abandonados mais uma vez.

Funcionários da ONU e deslocados internos sitiados no Complexo da Unamet.

Funcionários da ONU e deslocados internos sitiados no Complexo da Unamet.

A visita do Conselho de Segurança

Um grupo de cerca de 80 membros da missão se voluntariou para ficar, enquanto não se encontrasse uma solução que garantisse a evacuação de toda a população que estava refugiada ali.

Esta solução começou a se aproximar após uma visita decisiva de membros Conselho de Segurança, que estavam realizando reuniões em Jakarta e se dirigiram para Dili no dia 11 de setembro. Eles estavam acompanhados do comandante do exército Indonésio, o general Wiranto.

A missão viu de perto o drama dos refugiados dentro do complexo da Unamet e testemunhou a devastação no país, que teve mais de 80% das suas construções destruídas.

No dia seguinte, a Indonésia anunciou que aceitaria o envio de uma força multinacional. Com essa decisão, todos os que estavam na sede da Unamet foram evacuados e a violência foi contida. A Força Internacional para Timor-Leste, Interfet, foi aprovada pelo Conselho de Segurança no dia 15 de setembro de 1999 e começou a operar em 20 de setembro.

Muitos daqueles que participaram da Unamet relatam os laços emocionais profundos criados naquela época. Segundo Ian Martin, essa foi uma missão extremamente próxima da população timorense e que constantemente tinha a coragem do povo como fonte de inspiração. 

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