A cena de abertura de Vidas Passadas, filme de estreia da diretora sul-coreana Celine Song, é significativa. Nela, vemos três pessoas (dois homens e uma mulher) interagindo enquanto estão sentados em um bar. Não ouvimos o que eles falam. Mas uma conversa de fundo tenta adivinhar quem seriam eles. Há ali um casal, um grupo de amigos? Como sabemos quem é quem?
A cena traz uma chave interessante para decodificar o filme (que está indicado ao Oscar nas categorias de melhor filme e roteiro original), pois a linguagem corporal é um elemento importantíssimo para a leitura do longa-metragem de Song.
Afinal, existe em Vidas Passadas o risco de entendê-lo como um filme muito simples, que apenas falaria sobre amores que foram e os que poderiam ter sido – uma experiência quase universal na vida adulta.
Vidas Passadas está concorrendo na categoria de Melhor Filme no Oscar 2024
Por isso, podemos dizer que Vidas Passadas investe não exatamente na história, mas em como ela é contada. Conhecemos, ainda na infância, Na Young (Seung-ah Moon), que, aos 12 anos, é uma amiga bastante próxima de Hae Sung (Seung-min Yim). Eles vivem em Seul, na Coreia do Sul, e voltam juntos do colégio, passeiam e “competem” por quem tira as melhores notas.
Ocorre que a família de Na Young, composta por dois artistas, resolve imigrar para o Canadá. Junto com a irmã, ela terá uma vida nova, e inclusive ganhará um novo nome (ela passa a se chamar Nora Moon). Os amigos se separaram, e subentende-se que esse rompimento faz parte da vida – afinal, eram apenas duas crianças.
Contudo, Hae Sung (Teo Yoo na vida adulta) não a esquece e nunca deixa de procurá-la. Doze anos depois, ele encontra Nora Moon (Greta Lee, de The Morning Show) pelo Facebook. Ela agora mora em Nova York e se prepara para se tornar uma dramaturga.
O reencontro dos dois, pelos meios virtuais, tem algo de mágico, e um sentido de que “era para ser”. Mas a vida é mais complexa do que a narrativa circunscrita às histórias românticas, e muitas coisas acontecem que levam o filme de Celine Song para além da receita fácil do final feliz.
O amor para além das expectativas românticas
Mais anos se passam e Nora Lee acaba se casando com Arthur (John Magaro), um judeu que conheceu em uma residência artística. Seu encontro, portanto, também tem a ver com uma série de acasos, como o de estarem em um mesmo local e serem solteiros. Estariam eles destinados desde sempre a ficarem juntos? E onde entre Hae Sung nessa história?
A premissa das complicações dos encontros e desencontros amorosos já foi mostrada inúmeras vezes na literatura e no cinema. Em Vidas Passadas, a ideia é explorada pelo conceito coreano do “in-yun”, que cria uma espécie de espinha dorsal do filme (não trago mais detalhes para evitar spoilers).
Mas a beleza desse filme delicado é, especificamente, como a situação é abordada no entrelaçamento entre os três personagens: Hae Sung, Nora Moon e Arthur. Todas as três pontas dessa história são defendidas de forma extraordinária pelos atores, que optam pela sutileza.
Os sentimentos que os permeiam nem sempre são expressos por palavras, mas pela emotividade pulsante em cenas-chave. Observe, por exemplo, o modo comovente com que Celine Song filma o reencontro de Nora Moon e Hae Sung depois de 24 anos.
Já Arthur vai muito além de um elemento extra nesta relação. Sua expressividade vem à tona a partir da forma generosa com que reage ao fato de que sua esposa está prestes a reencontrar seu primeiro amor, e sabe que não tem o direito de impedir que ela viva isso.
Por outro lado, ele carrega uma melancolia que se revela quando ele diz que, quando ela dorme, ela fala em coreano. Diz aqui, com bastante sabedoria, mas também tristeza, que ela carrega dentro de si um mundo (assim como ele) ao qual ele nunca irá pertencer.
Vidas Passadas é um filme construído com linhas delicadas, destinado a se comunicar diretamente com os corações sensíveis que sabem que amar é também renunciar – seja ao ser amado, seja aos sonhos da infância, seja ao próprio orgulho.
Além disso, a obra fala também sobre a experiência de imigrar a um novo país e tornar-se outra pessoa, para além da identidade constituída pelo conceito de uma nação. E que, por vezes, certas pessoas são capazes de representar um retorno àquilo que fomos.