Um monólogo protagonizado por uma drag queen é cancelado após a primeira de duas sessões programadas.
À produção, os administradores do teatro, uma propriedade pública, creditam o cancelamento às condições climáticas adversas.
Pouco depois, no entanto, o governo divulga um comunicado nas redes sociais dizendo que a equipe tinha omitido deliberadamente informações sobre o conteúdo da montagem, “inadequado às famílias”, ao inscrever seu projeto e que, por isso, a encenação seria suspensa.
Dias após o fato, o presidente do país anuncia a demissão de mais de 300 funcionários do Ministério da Cultura por “promoverem agendas incompatíveis com a visão do governo”.
O episódio remete a vários casos de censura ocorridos no Brasil antes e durante o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), quando projetos culturais cujos assuntos desagradavam o eleitorado conservador, como temáticas de gênero e críticas à ditadura militar, eram comumente perseguidos. O fato em questão, porém, aconteceu em San Salvador, a capital de El Salvador, no mês passado.
O nome da peça censurada é “Inmoral”. Foi escrita, dirigida e estrelada por Irene Crown e produzida por Alexa Evangelista, a dupla por trás do Proyecto Inari. O espetáculo, que narra experiências de violência e rejeição de pessoas LGBTQIA+ salvadorenhas, estreou oito anos atrás.
Ele chegou a ser encenado no mesmo palco do qual foi barrado em 2016, 2017, 2018, 2019 e 2022. A diferença, segundo diz a criadora da peça à Folha, era que a versão anterior não tinha a mesma ênfase na estética drag.
Crown, 30, nega ter cometido quaisquer das irregularidades que, de acordo com o governo salvadorenho, motivaram a proibição. A reportagem entrou em contato com as autoridades do país pedindo esclarecimentos, mas não houve resposta.
A artista se queixa sobretudo do fato de que a maioria dos que atacaram o espetáculo nas redes sociais não só provavelmente não o assistiram, como nem sequer pesquisaram sobre o que ele é.
Ela diz que o nome do espetáculo, “imoral”, por exemplo, não tem a ver com um suposto elogio à imoralidade, como insinuado por detratores. É, na verdade, uma crítica aos “morais”, forma como o texto da peça descreve aqueles que, porque têm dinheiro e estão bem vestidos, acham que podem fazer o que quiserem.
“As pessoas estão dizendo que a obra é contra Deus, contra a família, que quero doutrinar crianças. É horrível. Sou uma artista, não estou criando uma propaganda [LGBTQIA+].”
A censura pode não surpreender os muitos fãs que Bukele conquistou fora de seu país na América Central, que comumente o identificam como um político da nova safra da direita latino-americana. Internamente, porém, a medida é mais uma amostra de seu giro em matéria de costumes após alcançar a Presidência.
Em março de 2020, por exemplo, já presidente de El Salvador, o líder se posicionou contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo em uma entrevista feita no Instagram.
Em 2014, durante um encontro com ativistas registrado por um portal de notícias LGBTQIA+, ele tinha se dito “um aliado” da comunidade, no entanto. “A luta dos direitos civis de nosso tempo é a da comunidade [ LGBTQIA+]. E eu quero estar do lado certo da história”, afirmou na ocasião.
Naquele ano, Bukele cumpria seu mandato como prefeito de Nuevo Cuscatlán, cidade de 6.000 habitantes localizada a meia hora de carro de San Salvador —que ele também governaria de 2015 a 2019. O líder foi eleito para ambos os cargos pela FMLN (Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional), tradicional partido de esquerda que reuniu os ex-guerrilheiros do país após a Guerra Civil de El Salvador (1979-1992).
A guinada ao conservadorismo começou depois que Bukele foi expulso da sigla, em 2017, e se intensificou quando ele foi eleito presidente, em 2019.
Desde então, sua administração dissolveu um órgão para diversidade sexual fundada durante a gestão do esquerdista Maurício Funes; censurou o episódio sobre sexualidade em um programa educativo da TV pública; ordenou a retirada de um livro do estande do país na Feira Internacional do Livro de Guatemala porque ele tinha entre seus contos uma alegoria sobre o governo salvadorenho; e aprovou uma lei que prevê pena de até 15 anos de prisão para quem divulgar mensagens do crime organizado —o que, na prática, prejudica o exercício do jornalismo e de atividades acadêmicas, por exemplo.
Ricardo Baldovinos, professor do departamento de Letras da UCA (Universidad Centroamericana José Simeón Cañas, um dos principais centros de ensino do país), conta que, devido à legislação, já precisou consultar o corpo jurídico da universidade antes de publicar um artigo de uma colega numa revista acadêmica.
“O governo se defende dizendo que aqui há plena liberdade de expressão. Mas todas essas nuances criam um clima com o qual as pessoas começam a se autocensurar.”
Para o pesquisador, por trás dessa guinada autoritária está acima de tudo a prioridade que Bukele dá à criação de uma marca própria. “Agora, essa marca política é mais mercantilizável na ultradireita”, prossegue o especialista, acrescentando ser esse o motivo de o líder ter priorizado bandeiras desse espectro político nos últimos anos.
O professor se refere a medidas como a guerra que Bukele lançou contra as gangues. Suas ações nesse âmbito reduziram imensamente o número de homicídios no país, mas o puseram no topo da lista de nações com as maiores taxas de encarceramento do mundo.
Parte dessas ações, especialmente as relacionadas à segurança, só foram possíveis com um regime de exceção, em vigor há mais de dois anos, que restringe direitos como a liberdade de reunião e autoriza prisões sem ordem judicial.
Segundo Baldovinos, a manutenção da ferramenta, somada a outros comportamentos autoritários do presidente, respinga em diversas áreas da vida da população, como a cultura.
A cruzada de Bukele contra a comunidade LGBTQIA+ parece ter ganhado mais ênfase este ano, após sua reeleição. Em fevereiro, por exemplo, o líder salvadorenho declarou que seu país proíbe a ideologia de gênero —termo usado por políticos conservadores para atacar questões de identidade, gênero e orientação sexual— pois ela promoveria, segundo ele, “ideias contrárias à natureza, a Deus e à família”.
Crown, a artista censurada, diz acreditar que a atual ofensiva do presidente contra a comunidade LGBTQIA+ se deve à necessidade de líderes populistas terem sempre um inimigo. Nos primeiros anos de Bukele no poder, esse inimigo teria sido o Congresso. Depois que ele obteve maioria legislativa, as gestões anteriores. Agora que se reelegeu, pessoas como ela viraram alvos, afirma.
A artista relata que o episódio de censura a atingiu sobretudo pessoalmente, com conhecidos deixando de falar com ela por defenderem o posicionamento do governo. Também diz que o clima de perseguição aumentou.
“Antes, o país estava dominado pelas gangues e tínhamos muito medo de sair de casa sem saber se íamos voltar. Agora, começa um temor psicológico, uma sensação de medo sem que haja uma repressão física.”