Aconteceu novamente.
Desta vez, foi mais aberrante e mais escandaloso o novo anúncio de uma “vitória” eleitoral do regime comandado por Nicolás Maduro. Enquanto respeitadas sondagens independentes davam uma vitória de Edmundo González Urrútia por mais de 30 pontos percentuais, o CNE anunciou que o ditador havia ganhado mais um pleito.
As consequências de médio e longo prazo são, neste momento, incalculáveis. Aumento do fluxo de venezuelanos saindo do país, retorno dos grandes protestos ou a volta a uma apatia total. O certo é que esse resultado não significa apenas a continuidade de um regime, mas inaugura para a Venezuela uma fase de autoritarismo ainda mais extremo, ao estilo de Cuba e Nicarágua.
Porém, se olharmos os detalhes, o regime agiu como sempre tem feito, pelo menos desde 2013, quando o sucessor de Chávez se anunciou vitorioso num já polêmico embate com o opositor Henrique Capriles.
Desde o início da semana, Jorge Rodríguez, o líder da Assembleia Nacional e grande estrategista do chavismo, já dizia que o resultado do CNE (Conselho Nacional Eleitoral) seria respeitado, mas com o sorriso sarcástico que sempre o caracterizou. Para meio entendedor, meia palavra basta. O resultado seria manipulado. Novamente.
No início da jornada, o chavismo esteve relativamente silencioso, deixando que a oposição se animasse, divulgando uma presença massiva aos centros de votação e um apoio emotivo a Edmundo González em seu fusca amarelo e a María Corina Machado sendo ovacionada em seus passeios em moto por Caracas.
Depois, começaram as táticas de sempre, o atraso na divulgação de números, líderes históricos do chavismo tratando a oposição como força desestabilizadora, cantando vitória antes da hora e afirmando que apenas a “revolução” traria paz e era democrática.
O resultado desta jornada foi muito parecido ao das eleições da Assembleia Nacional Constituinte, em 2017. Durante o dia, havia ficado claro que sua criação não iria ser aprovada pelas urnas. O país vinha de três meses de protestos contra o governo, e a oposição sequer participou do pleito. De modo escancarado, se podia notar que a população rejeitava a proposta.
Até que, encerrada a jornada, Maduro declarou que as urnas ficariam abertas até mais tarde, para que todos “tivessem a chance de expressar seu voto”. O tempo de prorrogação serviu para esconder e manipular a vontade popular. Ao final, Rodríguez falava de aprovação massiva ao projeto e começou uma maratona de shows comemorativos diante do palácio de Miraflores, muito antes da divulgação de resultados. Igualzinho a como ocorreu na noite deste domingo.
Ao longo da campanha eleitoral, as estratégias da ditadura foram as mesmas.
Afirmaram que respeitariam o acordo de Barbados, mas não aceitaram a candidata escolhida pela oposição em primárias, impediram uma observação eleitoral independente, perseguiram e prenderam opositores, invalidaram votos, urnas e centros inteiros de votação. O de San Antonio de Táchira, por exemplo, ficou aberto das 10am às 11am, depois fechou, com uma multidão do lado de fora gritando “queremos votar”, “queremos votar”.
Como se chegou a esse ponto?
Já se passaram 32 anos desde que o então tenente-coronel Hugo Chávez Frías (1954-2013) liderou uma tentativa de golpe de Estado contra o governo de Carlos Andrés Pérez (1922-2010). É preciso lembrar que, naquela época, a insatisfação popular crescia contra uma gestão que não soube enfrentar uma grave crise econômica e diversos escândalos de corrupção. Era latente a insatisfação popular, que foi expressada no famoso “Caracazo“, em 1989, uma rebelião que durou nove dias e terminou numa brutal repressão que levou a 276 pessoas mortas.
A Venezuela estava a ponto de uma explosão social, e o modelo bipartidista, em que a AD (Ação Democrática) e a Copei (Comité de Organización Política Electoral Independiente) dava claros sinais de não conseguir responder mais às demandas populares. Vale ressaltar que a política era exercida, então, por uma classe política elitizada, em que pouco tinha voz a população mestiça, indígena e afro-venezuelana.
Depois de abandonar a opção golpista, Chávez levou suas propostas às urnas, saindo-se vencedor em 1998, e assumindo no ano seguinte.
O início de seu governo foi marcado por uma melhoria econômica, um amplo programa de gastos sociais que ajudou a população mais humilde, trazendo um período de maior inclusão popular. A Venezuela se transformou em vanguarda da chamada “maré vermelha”, que foi abraçada também por outros países (Brasil, Bolívia, Equador, Argentina).
Chávez teve grande oposição desde o começo do governo, por ter rompido com um modelo que há décadas liderava o país. Mas foi apenas depois da tentativa de golpe contra ele, em 2002, que seu viés mais autoritário foi se impondo.
Os abusos aos direitos humanos, as expropriações de empresas privadas, a perseguição à imprensa, as eleições manipuladas passaram a ser um lugar-comum. Porém, até sua morte, por consequência de um câncer, Chávez ainda guardava altos índices de popularidade, que num primeiro momento conseguiu transmitir a Nicolás Maduro.
O governo deste último apenas acirrou o que a gestão de Chávez tinha de autocrático, avançando também contra a Justiça e o Legislativo. No ano seguinte à sua vitória eleitoral, veio uma época de protestos multitudinários, os mais intensos em 2014, em 2017 e em 2019. Nos períodos entre eles, reinou uma apatia profunda.
Agora, inicia-se uma nova etapa nessa história. Talvez até o termo “chavista” não se deva aplicar mais. Maduro levou o projeto a um extremo talvez impensável pelo ex-mandatário. O “madurismo” agora encaminha a Venezuela a ser pária mundial.