No ano em que se comemora o marco dos 200 anos da imigração alemã no Brasil, as relações entre os dois países estão excelentes, diz a embaixadora da Alemanha em Brasília, Bettina Cadenbach —apesar das divergências em relação aos dois principais conflitos do mundo hoje: o que ocorre na Faixa de Gaza, entre Israel e o Hamas, e na Europa, entre Rússia e Ucrânia.
Do governo brasileiro, Cadenbach, 64, diz esperar que tudo seja feito para que a Rússia encerre sua agressão contra a Ucrânia. A embaixadora rejeita comparações entre a campanha militar israelense em Gaza e ações da Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial —comparação feita pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em fevereiro.
Representante do governo do premiê Olaf Scholz no Brasil desde setembro de 2023, Cadenbach afirma ainda que o Brasil é um país de “pessoas calorosas e amáveis”.
Em entrevista por email à Folha, a diplomata fala sobre o estado das relações entre Brasil e Alemanha, investimentos europeus no país e competição com a China na região, e sobre cooperação na área ambiental.
Quais são as prioridades diplomáticas da Alemanha no Brasil em 2024, quando se celebram os 200 anos da imigração alemã ao país?
Em primeiro lugar, gostaria de falar sobre a tragédia no Rio Grande do Sul, uma das regiões onde os primeiros imigrantes alemães se estabeleceram há 200 anos. A Alemanha está apoiando com medidas emergenciais e assistenciais para a reconstrução, em coordenação com os órgãos locais competentes.
A ajuda será uma verdadeira maratona [que inclui apoio a projetos de reconstrução no valor de R$ 500 mil, entre outras medidas]. Estamos dispostos a auxiliar onde quer que seja necessário. Um projeto para Porto Alegre sobre “Resiliência Climática de Cidadesˮ também está sendo coordenado entre os nossos países.
A nossa prioridade política para este ano é seguir aprofundado as relações bilaterais com o Brasil, nosso parceiro estratégico, implementando uma agenda dedicada a uma transformação ecológica socialmente justa, algo que foi acordado entre os nossos governos em dezembro de 2023. Outra prioridade é, obviamente, nosso estreito diálogo no âmbito da presidência brasileira do G20 neste ano. Além disso, juntamente com o Brasil, já demos início aos preparativos para a COP30 em Belém, no próximo ano.
Um êxito [da diplomacia alemã no Brasil] é que, a partir de 2024, o dia 25 de julho será celebrado como “Dia da Imigração Alemãˮ no Estado de São Paulo, o que devemos aos esforços bem-sucedidos da nossa cônsul-geral, Martina Hackelberg.
Há 200 anos, a migração de alemães ao Brasil era a regra, e hoje a situação é inversa —a comunidade brasileira na Alemanha é composta por 160 mil pessoas, a quarta maior da Europa. Como a sra. vê a imigração brasileira à Alemanha?
Existem muitos laços de família e amizade entre a Alemanha e o Brasil. Isso também se reflete no fato de que as pessoas de um país vivem temporariamente ou por um período indeterminado no outro. A Alemanha se vê hoje como um país cosmopolita, aberto à imigração. Brasileiros que desejem fazer um curso superior ou iniciar o exercício de uma profissão na Alemanha são bem-vindos. Eles podem contar com uma série de incentivos e apoio para a sua chegada à Alemanha.
Nesse contexto, muitas universidades oferecem suporte a estudantes, e o Instituto Goethe colabora ativamente com um programa muito bem-sucedido de preparação para a integração, oferecendo, por exemplo, ajuda em questões relacionadas ao cotidiano no país.
Qual é a situação atual das relações diplomáticas entre Brasil e Alemanha? A percepção de Berlim sobre o governo Lula mudou desde o início do mandato?
As relações são excelentes. O Brasil é o único parceiro estratégico da Alemanha na América Latina, já desde 2008. A partir da posse do presidente Lula, nossas relações evoluíram de uma forma extremamente dinâmica. Um exemplo disso é o grande número de visitas recíprocas. O presidente Frank-Walter Steinmeier esteve presente à posse. O primeiro-ministro Olaf Scholz, a ministra das Relações Exteriores, Annalena Baerbock, e diversos outros ministros e ministras estiveram desde então no Brasil para encontros —mesmo antes de o Brasil assumir a presidência do G20.
Independentemente de mudanças de governo, como são comuns nas nossas democracias, o Brasil e a Alemanha mantêm uma cooperação de muitos anos. O Brasil é o principal parceiro comercial da Alemanha na América do Sul, e a Alemanha é o principal parceiro econômico do Brasil na União Europeia. Estimativas calculam mais de mil empresas teuto-brasileiras em atuação no Brasil, com uma grande concentração em São Paulo.
Os investimentos da China na América Latina vêm crescendo nos últimos anos e, com eles, a influência de Pequim no continente, especialmente em áreas como energia renovável. O que deve ser feito para possibilitar mais aportes europeus?
A União Europeia é o segundo maior parceiro comercial do Brasil. As empresas da União Europeia realizam os maiores investimentos no Brasil, segundo os dados mais recentes do Eurostat [a agência de estatística da UE], referentes a 2022. O Brasil é o quinto país que mais recebe investimentos de empresas da União Europeia, atrás apenas dos EUA, do Reino Unido, da Suíça e do Canadá.
É claro que ainda há margem para expansão. Existem oportunidades na área de energias renováveis, em matérias-primas críticas, e na implementação da meta do governo brasileiro de alavancar a produtividade da economia.
Um salto quântico seria, sem dúvida, uma rápida conclusão do acordo entre a União Europeia e o Mercosul, que a Alemanha defende enfaticamente.
O governo alemão está insatisfeito com a posição brasileira em relação às guerras na Ucrânia e na Faixa de Gaza? A sra. gostaria de que o presidente Lula tivesse outra conduta?
A guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia destruiu o sistema de segurança europeu, que construímos ao longo de 30 anos após a Guerra Fria, e lançou a Europa em um novo patamar de ameaça. O ataque põe radicalmente em questão a ordem baseada no direito internacional, na resolução pacífica de conflitos e na soberania e inviolabilidade dos territórios das nações.
As consequências de uma tal mudança de paradigma, ainda que a Rússia obtivesse êxito apenas parcialmente, seriam imprevisíveis —a nosso ver, também para o Brasil. Esperamos dos nossos parceiros brasileiros, portanto, que façam tudo, ao nosso lado, para que a Rússia encerre a sua agressão e a soberania e a integridade territorial da Ucrânia sejam restauradas.
Por razões históricas, a Alemanha tem uma relação especial com Israel. É evidente que a organização terrorista Hamas cometeu, em 7 de outubro de 2023, um dos maiores e mais cruéis atentados terroristas da história e que Israel tem o direito de se defender. Ao fazê-lo, Israel tem de respeitar o direito internacional —isso quer dizer, por exemplo, respeitar princípios relacionados à proporcionalidade e à proteção da população civil.
A esse respeito, estamos em diálogo com Israel —também divergente. Nesse contexto, consideramos inapropriado o uso, presente no debate público e nas mídias sociais, de um vocabulário que remete ao assassinato dos judeus na Europa pela Alemanha durante a Segunda Guerra.
Como a sra. avalia a política ambiental do governo Lula? Acredita que os recursos do Fundo Amazônia, que voltou a receber verba da Alemanha em 2023, sejam bem utilizados?
A Alemanha saúda que o governo federal brasileiro seja novamente, tanto na política interna como internacionalmente, uma forte voz em defesa do meio ambiente e da sustentabilidade. Compartilhamos o entendimento de que precisamos mudar radicalmente a nossa forma de produzir para enfrentarmos os desafios impostos pelas mudanças climáticas e pela escassez de recursos.
O Brasil e a Alemanha enxergam aí novas chances e perspectivas para a população. Foi por isso que o primeiro-ministro Scholz e o presidente Lula firmaram uma parceria abrangente para uma transformação ecológica e socialmente justa. Nós a colocamos em prática com muitos projetos concretos.
Uma primeira parcela no valor de aproximadamente R$ 110 milhões já foi paga ao BNDES [no âmbito do Fundo Amazônia]. Com esse valor, foram remuneradas as reduções de emissões do Brasil por desmatamento evitado no período de agosto de 2016 a julho de 2017, que totalizaram 4,2 milhões de toneladas de dióxido de carbono.
Ainda há muito a ser feito pela proteção da Amazônia. Nesse sentido, o Fundo Amazônia é um projeto exemplar de proteção da biodiversidade e das florestas. E é também um mecanismo de financiamento crucial e já consolidado.
Raio-X | Bettina Cadenbach, 64
Diplomata, é embaixadora da Alemanha no Brasil desde setembro de 2023. Cadenbach foi secretária-geral adjunta da Otan para Assuntos Políticos e Política de Segurança e trabalhou como embaixadora de seu país em Tbilisi, capital da Geórgia, além de ocupar cargos nas representações alemãs no Irã, na Estônia, na Turquia e nas Nações Unidas
Folha estreia série sobre bicentenário da imigração alemã
A chegada do navio com a primeira leva de imigrantes alemães ao Brasil completa 200 anos em julho. A comunidade germânica, inicialmente radicada no Rio Grande do Sul, espalhou-se por outros estados e ajudou a estabelecer uma forte relação entre os dois países, da cultura e educação aos negócios. A migração alemã e o caminho inverso, de brasileiros rumo à maior economia da Europa, serão tema de reportagens ao longo das próximas seis semanas.