Se a Suprema Corte for fiel à Constituição americana, ela deve barrar Donald Trump das primárias. Mesmo que isso signifique retirar da corrida o seu líder absoluto. Mesmo que isso leve uma turba extremista às ruas.
Essa é a opinião de Bruce Ackerman, professor de Yale e referência internacional em direito constitucional. Ele apresentou, em conjunto com outros acadêmicos, uma das manifestações à Suprema Corte (chamadas de amicus) no recurso contra a retirada do republicano das cédulas no Colorado.
Os juízes ouvem o caso, o mais espinhoso politicamente desde a eleição de George W. Bush em 2000, nesta quinta-feira (8). Não há uma data para a decisão, mas, com as primárias em andamento, a expectativa é de um desfecho rápido.
“Se você tem uma insurreição no meio do país em uma tentativa de se rebelar contra o presidente legalmente eleito dos EUA, isso de fato o desqualifica”, afirma Ackerman, defendendo sua leitura da Seção 3 da 14ª Emenda.
O texto, adotado em 1868, impede envolvidos em insurreição de ocuparem cargos públicos, e estava praticamente esquecido há décadas. O professor de Yale foi um dos primeiros a defender sua aplicação a Trump, afirmando que seu papel na invasão do Capitólio constitui uma rebelião.
O argumento serviu de base para ações apresentadas em mais de 30 estados pedindo a retirada do republicano das cédulas das primárias do partido. Até agora, a estratégia teve sucesso em dois: Colorado e Maine.
Já a defesa do empresário, chamando-o de “candidato presumível” à vaga republicana na corrida presidencial, afirma que retirá-lo das primárias seria antidemocrático, comparando a situação com a da Venezuela, e que isso causaria “caos e confusão”.
Trump venceu com folga os dois pleitos realizados até agora, e sua única adversária restante, Nikki Haley, perdeu nesta terça para a opção “nenhum dos candidatos” em uma votação sem o nome do empresário.
Muitos analistas afirmam que, diante das implicações políticas tectônicas da retirada do ex-presidente das primárias, é possível que a Suprema Corte fuja da análise do mérito e anule a decisão do Colorado com base em uma tecnicalidade jurídica.
Joga a favor dessa aposta o fato de a maioria da Corte ser conservadora e 3 dos 9 juízes terem sido apontados por Trump. Ackerman, no entanto, defende que é justamente o impacto político da decisão o que deve levar os magistrados a barrarem o empresário.
“A Suprema Corte é hoje a única instituição com credibilidade junto à direita. Claro, há alguns extremistas, talvez 5% a 10% da população, que vão dizer que os juízes receberam um suborno ou algo do tipo”, diz ele, minimizando o impacto de um banimento de Trump entre sua base. “Terão turbas nas ruas, sim, mas elas serão controladas, e até novembro teremos ordem.”
“A decisão vai alienar um terço dos republicanos, ou um terço da população. Sim, isso é um problema. Mas vai permitir que 40% [o percentual dos independentes] decidam entre um conservador sério e um democrata sério“, completa.
Na visão de Ackerman, a decisão pode inclusive melhorar a visão da população em geral sobre a Suprema Corte, que nunca esteve em patamar tão negativo quanto hoje, sobretudo após retroceder no reconhecimento do aborto como um direito constitucional, em 2022.
O professor de Yale lembra ainda que a 14ª Emenda prevê que o banimento de um candidato pode ser revertido pelo Congresso caso obtenha apoio de dois terços de cada Casa –ou seja, ainda haveria em teoria uma saída política para Trump.
Além de barrar o empresário, o jurista afirma que os juízes devem suspender o calendário das primárias por dois meses e permitir que mais pré-candidatos republicanos entrem na disputa, para não favorecer a única restante.
Ele especula ainda que, nessa reorganização do pleito, é possível que o cálculo mude também do lado democrata –Joe Biden já afirmou que só está concorrendo porque é Trump do outro lado. A troca de candidato nos dois partidos é o melhor dos cenários, diz o jurista.
“Se a Suprema Corte mantiver Trump, isso vai alienar profundamente o centro e a esquerda. Se ela desqualificá-lo, vai alienar profundamente os apoiadores fanáticos de Trump. Mas a maior parte das pessoas vai dizer ‘graças a Deus’. Pesquisa após pesquisa mostra que se a eleição for Trump contra Biden, as pessoas lamentam: ‘nós já passamos por isso’.”
O que diz a Seção 3 da 14ª Emenda da Constituição
O trecho proíbe quem já tenha sido membro do Legislativo (federal e estaduais) e do funcionalismo público (federal e estaduais) de se tornar “senador ou representante no Congresso, eleitor de presidente e vice-presidente, ou ocupar qualquer cargo, civil ou militar, sob os Estados Unidos ou sob qualquer estado” caso tenham se envolvido em “insurreição ou rebelião” contra a Constituição americana, o que abrange terem prestado ajuda ou apoio “aos inimigos dela”.
Há uma ressalva: a limitação pode ser removida para um indivíduo se dois terços do Senado e da Câmara votarem favoravelmente.
A seção foi adotada em 1868, com o objetivo de impedir que confederados (como são chamados os que lutaram pela secessão dos estados do sul) ocupassem cargos públicos após sua derrota na guerra civil americana.
Nenhuma pessoa poderá ser senador ou representante no Congresso, eleitor de Presidente e Vice-Presidente, ou ocupar qualquer cargo, civil ou militar, sob os Estados Unidos ou sob qualquer estado, que, tendo anteriormente prestado juramento como membro do Congresso, ou como funcionário dos Estados Unidos, ou como membro de qualquer legislatura estadual, ou como funcionário executivo ou judicial de qualquer Estado, para apoiar a Constituição dos Estados Unidos, tenha se envolvido em insurreição ou rebelião contra a mesma, ou tenha prestado ajuda ou apoio aos inimigos dela. Mas o Congresso pode, por votação de dois terços de cada Casa, remover tal incapacidade.
Os problemas para aplicar a 14ª Emenda a Trump
O texto, considerado vago, responde ao contexto da época, e sua interpretação hoje é motivo de divergência entre juristas. Um problema básico é que a redação não elenca explicitamente o cargo de presidente.
Como Trump nunca foi membro do Legislativo, a única forma de ele ser enquadrado como alguém que já jurou defender a Constituição anteriormente é se o presidente for entendido como um funcionário público. O juiz de primeira instância que negou o pedido para barrar o republicano no Colorado, por exemplo, entendeu que isso não é verdade.
De acordo com um relatório feito pela assessoria de pesquisas do Congresso no ano passado, a questão chegou a passar pela cabeça dos deputados quando discutiram a redação da seção 3.
Durante o debate, um senador questionou por que os cargos de presidente e vice-presidente haviam sido excluídos do texto, o que abriria caminho para um ex-confederado ocupá-los. Um outro senador respondeu que essa omissão era irrelevante pois essas posições estavam cobertas pelo trecho “qualquer cargo, civil ou militar, sob os Estados Unidos”.
O problema é que essa parte não aparece quando são listados os cargos previamente ocupados por um insurrecto, uma das condições para que a proibição seja acionada.
O segundo grande problema da Seção 3 é que ela não define o que é insurreição, o que dá espaço para questionamentos se a invasão ao Capitólio pode ser enquadrada como tal. O parecer do Congresso de 2022 cita outros instrumentos jurídicos, como o Ato de Insurreição, de 1807, que ajudam a delimitar o entendimento –indicando que o 6 de janeiro passa nessa régua.
Finalmente, o terceiro problema é se Trump participou da insurreição ou apoiou os insurrectos. A resposta poderia ser mais fácil caso ele tivesse sido condenado por insurreição ou ao menos acusado do crime –o que chegou a ser recomendado pelo Comitê da Câmara que o investigou. Mas a sugestão não foi acatada pelo Departamento de Justiça ao apresentar a denúncia formal contra o ex-presidente.
Uma condenação na Justiça não era necessária para que a Seção 3 fosse aplicada aos ex-confederados, por isso, formalmente, Trump poderia ser enquadrado mesmo sem uma sentença nesse sentido. No entanto, isso implica que a decisão sobre o envolvimento do ex-presidente na insurreição vai caber à Justiça.
Como funciona a análise pela Suprema Corte dos EUA
Os problemas da Seção 3 da 14ª Emenda explicam as decisões divergentes pelos tribunais estaduais e a certeza de que a questão pararia, eventualmente, na Suprema Corte. A ação do Colorado foi apenas a primeira a chegar, após a defesa de Trump e do Partido Republicano do estado entrarem com um recurso, chamado de petição de “certiorari”, no juridiquês americano.
As partes tiveram um prazo para apresentar por escrito um resumo do caso. Diversas entidades e pessoas interessadas no tema também apresentaram manifestações à Corte, o chamado “amicus curiae”.
Na audiência desta quinta (8), cada parte será representada por seus advogados, que farão a sustentação oral perante os juízes. A sessão é pública e relativamente rápida: a dinâmica pós-pandemia é que cada parte tenha apenas dois minutos para apresentar sua fala inicial, seguida por um bloco de uma hora de perguntas e respostas (30 minutos para cada lado).
Ao final, cada um dos nove juízes tem a chance de fazer uma última pergunta. As decisões são tomadas em reuniões fechadas realizadas, em geral, às quartas e sextas.