Quando sua filha completou 12 anos, Gighe Dutta decidiu que esse seria o ano em que ele e sua esposa deixariam de cortar cana-de-açúcar nos canaviais do oeste da Índia. O trabalho exigia uma longa migração, e sua filha teria que abandonar a escola —o primeiro passo para muitas meninas em direção a uma vida de abuso e pobreza.
Mas seu empregador se recusou a deixá-los ir embora. O empregador e seus amigos bateram em Dutta e o forçaram a entrar em um carro, disse o trabalhador. De acordo com um relatório que ele apresentou a uma agência do governo local, os homens o levaram a uma usina que diz fornecer açúcar para muitas empresas internacionais.
Dutta ficou trancado lá por dois dias, disse ele, e foi deixado para dormir no chão para reconsiderar sua decisão.
O estado de Maharashtra, rico em açúcar, fornece o insumo para empresas como Coca-Cola, PepsiCo e Unilever. Os políticos locais e os barões do açúcar dizem que trabalhadores como Dutta têm liberdade para ir embora. O trabalho é árduo, admitem eles, mas os trabalhadores sempre podem procurar emprego em outro lugar.
Mas os trabalhadores do setor açucareiro de Maharashtra estão longe de ser livres. Sem contratos escritos, eles ficam à mercê de seus empregadores para decidir quando podem sair. Com frequência, trabalham sob a ameaça de violência, sequestro e assassinato.
Não há dados oficiais sobre a frequência com que esse tipo de tratamento ocorre, e os abusos geralmente não são denunciados porque os trabalhadores temem retaliações. No entanto, grupos de direitos dos trabalhadores, autoridades do governo local, especialistas e até mesmo alguns proprietários de fábricas afirmam que o sequestro não é incomum e que os trabalhadores têm poucos recursos para se defender.
O New York Times e o Fuller Project obtiveram relatórios policiais e registros do governo local, entrevistaram proprietários de fábricas e coletaram os relatos em primeira mão de meia dúzia de famílias envolvidas em casos recentes de sequestro.
“Alguns dizem que eles vão matar você. As pessoas dizem todo tipo de coisa”, disse Vinobai Taktode, uma trabalhadora que relatou à polícia que seu marido havia sido sequestrado pelo empregador. “Temos medo de tudo”.
No início deste ano, o Times e o Fuller Project revelaram que empresas conhecidas e políticos indianos lucram com um sistema brutal que força crianças a trabalharem, empurra-as para casamentos enquanto ainda são menores de idade e coage as mulheres a fazerem histerectomias [cirurgias de remoção do útero] desnecessárias para mantê-las trabalhando nos canaviais sem serem incomodadas pela menstruação ou por doenças relacionadas.
A servidão por dívida é uma violação dos direitos humanos reconhecida internacionalmente. É ilegal na Índia e explicitamente denunciada pelas empresas ocidentais que compram açúcar de Maharashtra.
No entanto, o abuso de trabalhadores em Maharashtra não é segredo. O trabalho escravo é endêmico em todo o estado, de acordo com pesquisadores, funcionários do setor e grupos de direitos dos trabalhadores. Uma equipe de investigação do governo descobriu no ano passado que o setor açucareiro depende de um amplo sistema de trabalho forçado, de acordo com um documento obtido pelo Times e pelo Fuller Project.
Longe de abordar o problema, o governo de Maharashtra nega que ele exista. Uma declaração judicial apresentada este ano em nome de várias agências estaduais afirmou que os trabalhadores do açúcar eram “livres para se deslocar para qualquer lugar e nunca são aprisionados pelo empregador”.
A usina onde Dutta diz ter sido preso, a Jaywant Sugars, negou qualquer envolvimento. A usina tem muitos clientes e já forneceu à Sucden, uma importante corretora de commodities que diz comandar 15% do comércio global de açúcar.
A Sucden disse que não comprava da Jaywant Sugars desde 2020, que a usina havia assinado um código de conduta negando abusos trabalhistas em suas operações, e que que não voltaria a comprar da Jaywant sem “esclarecimentos prévios claros e documentados sobre as práticas trabalhistas”.
A servidão por dívida persiste porque os cortadores de açúcar em Maharashtra são pagos por meio de adiantamentos em dinheiro no início de cada temporada. Quase invariavelmente, de acordo com trabalhadores e empregadores, é impossível devolver o dinheiro em um único ano. A dívida é acumulada e as famílias ficam presas, geralmente sem contrato e sem recursos.
A violência pode ocorrer quando os trabalhadores tentam romper esse ciclo.
Um cortador de açúcar, Prahlad Pawar, afirmou que seu empregador lhe disse no ano passado que ele e outros não haviam trabalhado o suficiente durante a colheita.
Assim, o empregador ordenou que Pawar, sua esposa e filhos e outra família trabalhassem como seus empregados pessoais durante a entressafra, de acordo com um relatório apresentado a um órgão do governo local e entrevistas com membros da família. Pawar e sua família acabaram fugindo, caminhando por dias em direção à sua aldeia, pedindo comida e dormindo em canaviais.
“As pessoas nas cidades, que bebem essas bebidas geladas e comem chocolates, estão vivendo suas vidas e nem sequer pensam em nós”, disse Pawar. “Gostaria que, pelo menos uma vez, elas tentassem trabalhar como nós.”
As mulheres pagam o preço
Vinobai Taktode não sabe ao certo quantos anos tem —talvez 30, disse ela, ou 35. Como muitas mulheres cortadoras de cana-de-açúcar, ninguém registrou seu aniversário.
Ela mora no vilarejo de Alepur, a muitas horas de carro da família de Dutta. Mas, assim como a filha pré-adolescente de Dutta, ela cresceu entre as plantações, fazendo tarefas para os pais junto com os irmãos.
Ao contrário de Dutta, seus pais não haviam procurado uma saída. Quando estava no início ou na metade da adolescência, ela se casou com um homem que também cortava cana-de-açúcar.
Em Maharashtra, a colheita é geralmente cortada por uma equipe de marido e mulher conhecida como koyta. Cada casal fornece para uma usina de açúcar específica, mas é contratado por um empregador intermediário que distribui o dinheiro da usina a cada temporada.
Os pagamentos de quantia única permitem que os trabalhadores paguem por custos maiores, como reparos domésticos ou despesas médicas. No entanto, a maioria dos trabalhadores agrícolas tem apenas acordos verbais e nenhum recurso se seus contratantes mudarem os termos. As usinas de açúcar negam qualquer relacionamento com os trabalhadores ou qualquer responsabilidade por seu tratamento.
“O trabalho é completamente invisível, e essa invisibilidade é fundamental para a obtenção de lucros”, disse Seema Kulkarni, da Makaam, um grupo que defende as trabalhadoras rurais na Índia.
Taktode, seu marido e cinco filhos enfrentaram dificuldades financeiras. Ela não sabe todos os detalhes porque, como na maioria dos casais de agricultores, seu marido fez todos os acertos com o empregador.
Mas seu marido, Shivaji Bhivaji Taktode, lutava contra o alcoolismo. Há alguns anos, ele faltou a duas semanas de trabalho enquanto se embriagava com um vinho doce feito de melaço comum na região. Todas as noites, durante dias, disse ela em uma entrevista, o empregador e meia dúzia de amigos agrediram o marido de Taktode por ele não estar trabalhando.
Uma noite, ela se lembra, alguém o espancou com o lado cego de uma foice, a ferramenta usada para cortar cana. As costas de seu marido ficaram cobertas de hematomas. Em outra noite, disse ela, um homem bateu em sua cabeça com uma pedra, levando-o ao hospital.
Foi então que Taktode descobriu que, embora os homens controlem as finanças, as mulheres e as crianças podem pagar o preço. O empregador obrigou Taktode e seu filho mais velho a fazer dias de trabalho extra nos canaviais, disse ela.
Mas isso ainda não era suficiente para compensar o tempo perdido.
O empregador disse a Taktode que seu marido o havia roubado ao faltar ao trabalho, disse ela. Ela ficou apavorada. Eles não tinham registros e nenhuma maneira de calcular seu trabalho, sua dívida ou uma saída. Ela sabia que eles tinham que fugir.
“Eles costumavam nos ameaçar”, disse ela. Ela se lembra de seu empregador dizendo: “Se você sair, nós a mataremos”.
No final de uma noite em 2022, a família juntou alguns pertences e fugiu, marchando por horas, segundo ela, por “uma selva” de cana-de-açúcar farfalhante até chegar a uma estação de trem. Quando seu filho de 6 anos não conseguia mais andar, Taktode o carregou.
Depois de dois anos escondidos, eles voltaram para casa neste verão, presumindo que as coisas haviam se acalmado.
Eles estavam errados. O empregador apareceu novamente no final de agosto e forçou seu marido a entrar em um carro. Um parente lembrou-se de ter testemunhado o sequestro e contou os detalhes, que também foram registrados em um relatório policial.
O empregador não pôde ser encontrado apesar de repetidas ligações telefônicas. A usina para a qual ele trabalhava recusou um pedido de entrevista.
Taktode, no entanto, disse que o empregador havia telefonado para sua família e exigido dinheiro para a libertação de seu marido.
Então, neste outono, Shivaji Taktode retornou, abalado e gravemente ferido, disse seu filho. Ele escapou, disse sua família, mas os detalhes foram escassos. O telefone celular do empregador foi desligado.
Não está claro se esse foi o fim da provação de Vinobai Taktode. Eles estão desamparados. A comida é escassa. Quando chove, gotas de água se infiltram pelas frestas do telhado de lata da casa da sogra, transformando o chão de terra em lama.
Se o empregador voltar, Taktode diz que não tem ideia de como conseguirão o dinheiro.
O desespero de um pai
Dutta e sua esposa estão desesperados para evitar a vida dura do corte de cana-de-açúcar para seus filhos. Neste outono, eles decidiram que não iriam migrar para a colheita como de costume. Eles já haviam terminado.
Sua filha estava terminando o ensino fundamental e eles queriam que ela levasse as aulas a sério. Dutta nunca teve a educação que queria. “Preciso educá-los. Meus dois filhos”, disse ele.
Mas quando decidiram se demitir, já haviam recebido seu adiantamento anual. Para a maioria dos trabalhadores, esse seria o fim. Eles teriam que retornar aos canaviais. Os Duttas, no entanto, conseguiram juntar algum dinheiro cultivando algodão, painço e lentilhas na baixa temporada.
Dutta marcou uma reunião com seu empregador. Ele se ofereceu para pagar 70% do adiantamento antecipadamente e depois voltar com o restante em alguns dias.
O empregador, que estava bebendo com amigos, ficou furioso, contou Dutta. Ele exigiu que pagasse o dobro do adiantamento se quisesse se demitir. Eles discutiram, e o empregador e seus amigos se voltaram contra Dutta, espancando-o.
“Havia de oito a dez pessoas, e todas estavam bebendo. Quem ouve depois de beber?” disse Dutta em uma entrevista, roendo as unhas enquanto falava. “Eu estava sozinho.”
Eles o empurraram para dentro de um carro, tiraram seu telefone e começaram a dirigir para o sudeste. Foi metade de um dia de viagem até chegarem à usina Jaywant Sugar, disse ele.
Como a maioria das usinas de Maharashtra, a Jaywant é controlada por uma família politicamente poderosa. O presidente da usina, C. N. Deshpande, negou que alguém tenha sido detido contra sua vontade em sua fábrica. Ele disse que não sabia nada sobre Dutta.
Mas reconheceu que os trabalhadores do setor açucareiro que se recusam a trabalhar ou não conseguem pagar seus adiantamentos representam um problema. Em última análise, o dinheiro da usina está em jogo. “Os empregadores chegam e dizem que os trabalhadores fugiram”, disse Deshpande. Eles perguntam o que fazer, acrescentou. “Nós lhes dizemos que não sabemos, mas precisamos do dinheiro.”
Sequestros e espancamentos são comuns no setor, disse ele. Muitas vezes, acrescentou, os executivos das usinas sabem dessas táticas ou as incentivam. E ele reconheceu que as usinas raramente enfrentam consequências.
Alguns trabalhadores foram até assassinados, disse ele. Em um caso em 2014, um empregador espancou e sequestrou um trabalhador, depois esfaqueou seu filho no peito, de acordo com os registros de prisão e uma entrevista com a família.
A usina de Deshpande não usa violência ou ameaças, disse ele. Mas, observou ele, nunca deixou de recuperar um adiantamento.
Fuga
Dutta, fraco por causa da fome e do espancamento, foi levado para um quarto escuro sem móveis, segundo contou posteriormente a uma agência de assistência jurídica do governo. Nos dois dias seguintes, ele foi liberado apenas para usar o banheiro.
Ele disse que, apesar da negação de Deshpande, os funcionários da fábrica viram o que estava acontecendo. Um deles até foi designado para levar-lhe refeições da cantina, mas o ameaçou quando ele implorou para ser liberado.
Dutta não tinha ideia de quando, ou se, seria libertado. “Eu estava muito assustado”, disse ele. “Eu não conseguia pensar, era como se minha cabeça tivesse parado de funcionar.”
Quando conseguia se concentrar, era tomado por pensamentos sobre sua mãe, esposa e filhos e como eles deviam estar preocupados. Ele pensou em sua filha, disse ele, uma garota tímida que gostava de animais e que alimentava a cabra da família.
Depois de dois dias, o irmão de Dutta descobriu o que havia acontecido. Ele telefonou para o empregador, que reiterou sua exigência: o dobro do dinheiro de volta. Em resposta, o irmão e a esposa de Dutta registraram um boletim de ocorrência na polícia.
O empregador disse a Dutta que era hora de ir embora e o conduziu a um carro. Dutta estava apavorado com o local para onde o estavam levando, disse ele. Em uma parada na estrada, ele fugiu.
Ele chegou em casa cerca de uma semana depois e registrou um relatório na agência de assistência jurídica. As semanas se passaram e nada aconteceu. Quando a reportagem perguntou, a polícia minimizou o incidente e disse que Dutta e o empregador estavam resolvendo as coisas.
Dutta disse que tinha medo de que o empregador voltasse para buscá-lo. Mas ele e sua esposa estão convencidos de que não voltarão ao corte de cana-de-açúcar.
Décadas de trabalho agrícola prejudicam seu corpo de forma irreparável. Dutta pode sentir isso nas articulações dos dedos e na base da coluna. Sua esposa não é diferente.
A colheita de algodão e painço para sobreviver também será dolorosa. E nunca antes havia gerado dinheiro suficiente para viver. Mas Dutta disse que isso não importava. “Em qualquer trabalho, é preciso sofrer”, disse ele.
Ele se certificaria de que sua filha continuasse na escola, disse ele —custe o que custar.