Um clima de tensão toma conta da Argentina nesta quarta-feira (20), dia em que movimentos sociais e sindicais farão um protesto massivo marcado para as 16h no centro de Buenos Aires e em outras cidades do país. É o primeiro ato depois que o presidente Javier Milei anunciou que não permitirá o bloqueio de ruas, o tradicional “piquete”.
Advogados e organizações de direitos humanos enviam representantes para os pontos de concentração, jornalistas combinam de ir à marcha juntos e preparam equipamentos contra gás de pimenta, e motoristas de aplicativos repassam avisos para evitar a região, que já conta com barreiras policiais.
Telas de estações de trem da capital, por onde muitos devem chegar, também amanheceram com a frase repetida pelo governo de Milei nas últimas semanas: “Quem bloqueia, não recebe”, se referindo aos programas de assistência social que ele prometeu cortar a quem for identificado obstruindo ruas.
“Se você pretende exercer seu direito de protestar, leve em consideração que só pode fazê-lo em locais autorizados. Lembre-se de que bloquear uma rua, uma avenida ou uma rodovia é um crime punido por lei”, repete uma mensagem nos televisores e em alto-falantes, que trazem ainda uma linha telefônica de denúncia a quem se sentir coagido a protestar.
A ideia inicial era que os manifestantes se concentrassem a partir das 16h em frente ao Congresso Nacional e caminhassem por 2 km em linha reta até a Casa Rosada, mesmo trajeto que Milei fez ao tomar posse no último dia 10 —eles costumam se organizar por blocos, delimitados por cordas.
Mas, algumas horas antes do protesto, os organizadores resolveram alterar o percurso para “assegurar a realização do ato na Praça de Maio [em frente à Casa Rosada] e contornar as provocações do governo nacional”. Agora, os grupos se dispersarão em dois eixos: nas diagonais Sul e Norte da cidade.
São avenidas grandes, mas menores do que a avenida de Maio por onde antes passariam. Ainda assim, o trajeto bloquearia algumas das principais vias do centro, como a avenida 9 de Julho. A tensão está, portanto, em como as forças de segurança e os manifestantes reagirão.
Um fator simbólico adiciona ainda mais pressão à situação: o protesto acontece no mesmo dia em que, 22 anos atrás, um caos social tomou a Argentina e terminou com estimados 39 mortos, incluindo uma repressão violenta na Praça de Maio. O então presidente Fernando de la Rúa renunciou e deixou a sede do governo de helicóptero.
Todos os anos um ato marca a data, mas este ganhou força e somou diversas organizações contra o governo de Milei e seus anúncios de duros cortes de gastos públicos, com o objetivo de acabar com o déficit fiscal e frear a galopante inflação no país, que atingiu os 161% anuais em novembro.
O presidente ultraliberal deve anunciar em rede nacional, às 21h desta quarta, um “superdecreto” para revogar ou alterar mais 3.500 leis, tendo como linha geral a desregulação da economia. A transmissão antes estava marcada para as 12h, mas foi adiada.
Dois dias depois de assumir, ele acabou com o controle de preços e desvalorizou fortemente o peso, o que causou uma onda de remarcações de preços em comércios e serviços e fez o poder de compra da população derreter ainda mais, dessa vez de forma repentina.
Ele também disse que vai suspender todas as obras públicas, reduzir subsídios de energia e transporte a partir de 1º de janeiro, enxugar repasses às províncias e aumentar temporariamente impostos a importações e exportações. Ao mesmo tempo, subirá os valores de benefícios sociais aos mais pobres, que agora promete cortar a quem bloquear as ruas.
O ato desta quarta foi convocado principalmente pelos chamados “piqueteiros”, conjunto de organizações que usam o fechamento de ruas como principal forma de protesto desde a década de 1990 no país. Um dos porta-vozes é o Polo Obrero (polo operário, em português), grande grupo composto por trabalhadores desempregados ou de baixa renda.
Segundo estimativas de seus líderes, serão cerca de 50 mil pessoas e mais de 100 organizações reunidas, incluindo grandes centrais sindicais como a CTA Autônoma e a ATE Capital, de funcionários públicos, que criticam o corte de metade dos ministérios e o projeto de privatizar empresas públicas.
Eles argumentam que as duras reformas anunciadas por Milei acabaram não recaindo “sobre a casta [política, como ele afirmava durante a campanha], e sim sobre a ‘canasta'”, ou seja, a cesta básica e o povo. Também têm evocado os artigos 14 e “14 bis” da Constituição argentina, que falam sobre liberdade de expressão e reunião e direitos trabalhistas.
O governo e a ministra de Segurança, Patricia Bullrich, por outro lado, têm usado o bordão “dentro da lei tudo, fora da lei nada”, evocando o artigo 194 do Código Penal argentino, que diz que quem “impedir, obstruir ou dificultar o funcionamento normal dos transportes por terra, água ou ar […] será punido com prisão de três meses a dois anos”.
Diferentes grupos tentaram pedir habeas corpus preventivos contra o protocolo de Milei nos últimos dias, mas a Justiça os rejeitou por considerar que a questão não se aplica aos requisitos para habeas corpus.