Sobrevivente de naufrágio é assombrado por memórias – 04/05/2024 – Mundo – EERBONUS
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Sobrevivente de naufrágio é assombrado por memórias – 04/05/2024 – Mundo

À deriva no oceano Atlântico, os migrantes da África Ocidental recorreram a beber água do mar para saciar a sede insuportável. Então, começaram a morrer um por um.

Lidar com os corpos tornou-se um desafio diário para aqueles que ainda estavam vivos no barco de pesca de madeira colorido.

“Pensei que seria o próximo, que numa manhã, eu também estaria morto e no mar”, conta Birane Mbaye, um dos 101 homens e meninos que partiram de uma vila de pescadores em um trecho selvagem da costa do Senegal em julho passado, esperando chegar à Europa.

Eles nunca conseguiram. De volta à Fass Boye, um aglomerado de prédios baixos de concreto cercado por um mosaico de campos e o oceano, Mbaye relembrou o calvário de cinco semanas e explicou por que arriscaria sua vida novamente por uma chance de proporcionar uma vida melhor para sua jovem família.

Ganhando tão pouco quanto 2.000 francos CFA (cerca de R$ 16) por dia como pescador contratado, Mbaye divide um quarto pouco mobiliado com sua esposa e filha de 1 ano na casa semiconstruída de seus pais. Eles dormem em um colchão no chão e se banham com água de uma chaleira plástica.

A pobreza arraigada e histórias de fortunas ganhas no exterior levaram Mbaye e um amigo próximo, Omar Seck, a se espremerem no barco com destino às Ilhas Canárias da Espanha, a cerca de 1.400 km de seu vilarejo.

Um número recorde de pessoas tentou a perigosa travessia do Atlântico no ano passado, depois que outras rotas para a Europa através do deserto do Saara e do mar Mediterrâneo passaram a ser mais fortemente policiadas. Mais de 39.900 pessoas chegaram às Ilhas Canárias da África Ocidental, um recorde, de acordo com o Ministério do Interior da Espanha. A maioria era do Senegal ou de Gâmbia.

Mas barcos precários, falhas de motor e más condições climáticas são apenas alguns dos perigos que muitas vezes levam ao desastre. Estima-se que pelo menos 6.007 pessoas morreram nesta rota em 2023, de acordo com o grupo de direitos dos migrantes Caminhando Fronteiras. Outros provavelmente partiram e se perderam sem deixar rastros.

MEIOS DE VIDA PERDIDOS

Dezenas de barcos de pesca de madeira, conhecidos como pirogas, enfileiram a praia arenosa de Fass Boye, um sinal do papel central da pesca na economia local. Mas, como muitas comunidades costeiras, o vilarejo a cerca de 100 km ao norte da capital do Senegal, Dacar, viu centenas de seus moradores partirem em busca de mais oportunidades.

A diminuição da quantidade de peixes e o aumento dos custos de vida tornaram difícil chegar ao fim do mês, dizem os moradores. Eles culpam a pesca excessiva por parte de grandes embarcações estrangeiras com redes de arrasto e dizem que seus pequenos barcos não conseguem competir.

Mbaye, que está na casa dos 30 anos, afirma que começou a pensar em tentar a sorte na Europa após o nascimento de sua filha, Maguette, em abril do ano passado. Ele se preocupava com o futuro financeiro da família depois de gastar todas as suas economias em festividades tradicionais para marcar sua chegada.

Ele fala sobre sua empolgação em 10 de julho, quando ouviu que um barco partiria clandestinamente naquela noite. Ele e Seck correram para comprar arroz, biscoitos e água fresca para a viagem. Ele estava feliz por estar viajando com seu amigo. Eles se conheciam desde a infância, aprenderam a pescar juntos e estavam constantemente na companhia um do outro. A possibilidade de trabalhar como agricultores na Espanha dominava suas conversas há semanas.

Mbaye ligou para sua mãe pedindo para ela rezar por ele. Como último passo, ele tomou o que descreveu como um banho místico em água perfumada com ervas —tradição local destinada a afastar a má sorte.

Carregada de passageiros e suprimentos, a piroga de teto aberto deslizou para o oceano escuro por volta das 22h e iniciou a jornada para o norte ao longo da costa da África Ocidental, conta Mbaye. Eles esperavam chegar às Ilhas Canárias em cerca de uma semana.

O clima era festivo nos primeiros dias, apesar do espaço apertado e da falta de abrigo contra o sol escaldante. “Todos pensávamos que, ao chegar, encontraríamos trabalho no qual poderíamos prosperar”, diz Mbaye.

Então o vento aumentou, e ondas violentas batiam nos lados do barco. Às vezes, a piroga parecia não estar indo a lugar algum, como se estivesse colada na água agitada. Um dia, ele não tem certeza de quanto tempo na viagem, o motor de popa ficou em silêncio. Eles tinham ficado sem combustível.

À DERIVA

Por dias, eles flutuaram. Em algum momento, beberam os últimos goles de sua água. Ainda tinham biscoitos, que racionavam a cada dia, mas suas bocas estavam tão secas que tinham dificuldade para comer. “Não dava nem para cuspir”, diz Mbaye.

Foi então que começaram a beber água do mar, o que acelera a desidratação devido ao acúmulo de sal.

“Foi muito difícil de beber, e foi isso que matou muitas pessoas”, conta, pausando como se para firmar a voz. “Nós conversávamos com alguém, e no dia seguinte, essa pessoa estaria morta.”

A partir de então, as lembranças de Mbaye sobre a viagem são nebulosas, mas pesadelos vívidos sobre seu amigo ainda o fazem acordar à noite aos gritos.

Ele diz se lembrar de ter ajudado a jogar o corpo de Seck do barco, deixando-o afundar nas profundezas como muitos antes dele. “Realmente não tínhamos escolha. Tínhamos que controlar nossas emoções e jogá-los no mar.”

Ele pegou o anel de prata de Seck como lembrança. “Quando acordo e olho para o anel, lembro como perdi um amigo querido. Às vezes o vejo como se fosse real e estivesse sentado ao meu lado.”

RESGATE

Semanas se passaram, e Mbaye começou a perder a consciência. Ele diz se lembrar de ter pensado: “Se não formos encontrados no dia seguinte, eu vou morrer.”

Mas em 14 de agosto, após 35 dias no mar, a sorte deles mudou. Um barco de pesca espanhol avistou a piroga a cerca de 140 milhas náuticas (260 km) a nordeste da Ilha do Sal no arquipélago de Cabo Verde, segundo o Centro de Coordenação de Resgate Marítimo da Espanha. À deriva, eles haviam se desviado mais de 350 milhas náuticas (quase 650 km) a oeste da rota planejada e estavam quase tão longe das Ilhas Canárias quanto quando começaram.

Apenas 38 pessoas sobreviveram. Sete corpos foram recuperados, e 56 pessoas foram dadas como desaparecidas, presumivelmente mortas. A maioria era de Fass Boye.

Mbaye diz não ter lembranças do resgate, mas imagens da época mostram pessoas exaustas recebendo ajuda para sair do barco espanhol em Cabo Verde no dia seguinte.

Médicos levaram Mbaye às pressas para o hospital, onde ele foi tratado por danos nos rins que o mantiveram no país depois que as autoridades senegalesas levaram seus companheiros sobreviventes para casa. Quando Mbaye retornou a Fass Boye, seus pés estavam tão inchados que ele precisava de uma bengala para andar.

Agora ele está de volta ao trabalho em barcos de pesca, trabalhando à noite no mar aberto, mesmo enquanto luta contra problemas renais duradouros e lembranças dolorosas.

Ele afirma que encontra conforto na vida familiar, embalando sua filha na praia onde sua mãe e esposa ganham dinheiro extra secando e defumando peixes. Em casa, ele se curva em oração, estendendo seu tapete em um pátio de areia onde sua esposa pendura a roupa para secar.

Em uma parede de sua casa, há uma foto de Mbaye e seis de seus amigos pescadores, todos empoleirados em uma colorida piroga na praia. Do grupo, três estão na Espanha e outro morreu tentando chegar lá.

Mbaye não se deixa abater por sua própria tentativa desastrosa. “Não desistirei”, afirma. “Se tiver melhores oportunidades no Senegal, prefiro ficar aqui. Mas se não tiver, arriscarei minha vida novamente.”

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