Há dez anos, o sequestro de 276 meninas pelo grupo terrorista islâmico Boko Haram em uma escola secundária em Chibok, cidade majoritariamente cristã no nordeste da Nigéria, extrapolou as fronteiras e virou uma campanha global pela libertação das garotas. O crime, no entanto, ainda assombra o país pelas suas consequências, ao mesmo tempo que é apontado por familiares das vítimas como um caso esquecido pelo governo.
A começar pelo básico: 112 sequestradas ainda não foram recuperadas, e seu destino é incerto. Naquela noite de 14 de abril de 2014, homens armados invadiram uma escola só de meninas na cidade e levaram as capturadas em caminhões para a floresta de Sambisa, próxima dali.
Foram 57 as que fugiram, ainda durante o sequestro, pulando dos caminhões, ou nas primeiras semanas de cativeiro na mata, de acordo com o grupo ativista #BringBackOurGirls (tragam de volta nossas meninas, em inglês). Outras 107 foram libertadas em negociações, principalmente em 2016 e 2017. Das 112 restantes, segundo o movimento, não se sabe quantas estariam ainda com o grupo terrorista ou mortas.
A hashtag da qual surgiu o grupo de pressão pela libertação das sequestradas foi compartilhada ao redor do mundo depois do crime, inclusive por gente como a vencedora do Nobel da Paz Malala Yousafzai e a então primeira-dama dos Estados Unidos, Michelle Obama.
Foi naquele momento, quando a era das redes sociais dava seus primeiros passos mais robustos, que a percepção da violência do grupo jihadista criado em 2009 se tornou global. Antes, o Boko Haram fez uma série de ataques e explosões pelo país, inclusive em prédios das Nações Unidas.
“Principalmente à noite, penso na minha filha. Nunca vou esquecê-la”, disse à agência Reuters Solomon Maina, pai de uma das sequestradas que nunca retornaram.
Há ainda, para as que são resgatadas, a dificuldade de reintegração à comunidade após tantos anos cativas. Algumas sofrem com o estigma de terem passado pelo cativeiro, onde sobreviventes relatam ter havido estupros e casamentos forçados.
Em relato ao britânico The Guardian, Amina Ali Nkeki, a primeira das meninas do grupo que permaneceu anos cativo a escapar da floresta, em 2016, conta que se casou com um dos sequestradores, que mais tarde fugiu com ela, com medo de ser explorada sexualmente.
Hoje, cursando universidade e separada, ela cria a filha de oito anos, que sofre bullying e rejeição de colegas e é chamada de “filha do Boko Haram”.
Dezenas das resgatadas, segundo a Fundação Murtala Muhammed, que realiza trabalho de apoio educacional com as meninas de Chibok, vivem hoje em campos de reeducação com as crianças que deram à luz no cativeiro e terroristas rendidos.
As instalações são coordenadas pelas Forças Armadas da Nigéria e têm como objetivo desradicalizar as resgatadas e os homens capturados —no cativeiro, as meninas foram obrigadas a se converter ao Islã e passavam a maior parte do tempo em aulas e estudos religiosos.
“Estou cansada de ficar no campo. Quero ir para casa e ficar com minha família”, disse uma sobrevivente de Chibok à agência Reuters, pedindo para não ser identificada com medo de represálias militares.
A incapacidade dos sucessivos governos nigerianos em trazer de volta as sequestradas reflete uma “falha de inteligência e governança”, segundo Aisha Muhammed-Oyebode, diretora executiva da fundação, ao site Semafor. “Nós ainda não temos um sistema de alertas de resposta rápida para quando crianças são sequestradas de escolas”, diz.
A cobrança se refere à multiplicação de sequestros do tipo por toda a Nigéria, principalmente nos estados do norte, mais pobres e de população rural, marginalizada e, majoritariamente, muçulmana.
A década que se passou desde o crime de Chibok foi polvilhada de novos ataques do tipo pelo grupo jihadista, alguns maiores do que aquele de 2014. A crise de segurança fez com que os sequestros deixassem, inclusive, de ser exclusividade do Boko Haram.
De acordo com a ONG Human Rights Watch, em 2021 o governo nigeriano adotou uma política pública com o objetivo de aumentar a segurança em escolas, reforçar a segurança e a capacidade de elas reagirem a ataques do tipo, entre outras medidas.
Cerca de US$ 315 milhões, em valores da época, teriam sido investidos na iniciativa, com anúncio de mais US$ 24 milhões em 2023 —embora com poucos detalhes sobre implementação e pouca clareza sobre o projeto.
Particularmente nos últimos meses, no entanto, provando a ineficácia de medidas tomadas, a prática voltou a crescer. Apenas em uma semana de março, ao menos 564 foram sequestrados, segundo a agência da ONU para os direitos humanos.
Nos casos mais recentes de larga escala, em março, homens armados levaram à força cerca de 300 crianças de vilarejos no estado de Kaduna, no norte, em incidentes separados. Não se fala em atuação do grupo jihadista nesses sequestros, mas de gangues que fazem dos pagamentos de resgate uma indústria lucrativa, obrigando comunidades a se desfazer de economias e bens.
Em 2022, durante o governo de Muhammadu Buhari, o Legislativo nigeriano tornou o pagamento de resgates ilegal, em uma tentativa infrutífera de coibir os sequestradores.
Em 2018, em Dapchi, foram 110 meninas capturadas pelo Boko Haram, que também levou à força 344 garotos em Kankara, em 2020. Em 2021, gangues armadas sequestraram 300 meninas de Jangebe e 140 estudantes em Kaduna, mesmo estado do grande ataque recente. E esses são apenas os casos com maior número de vítimas, principalmente nos estados do norte.