Patricia Hearst Shaw entrará, no próximo dia 20, no clube dos septuagenários. Nos últimos anos, esta vovó loira tem se dedicado ao Westminster Kennel Club Dog Show, tradicional concurso canino em Nova York de onde seus buldogues franceses Tuggy e Rubi saíram premiados em 2017.
“Estou meio que nas nuvens agora”, disse à época a uma repórter do New York Times. Ali era Patricia, “mãe” dos cãezinhos medalhistas que bateram 44 adversários da mesma raça.
Há 50 anos, ela ganhou espaço na mídia como Patty Hearst, a neta do magnata da mídia William Randolph Hearst (1863-1951), tido como inspiração para “Cidadão Kane” (1941), de Orson Welles (1915-1985).
Patty tinha virado uma refém do Exército Simbionês de Libertação, organização radical de extrema esquerda nos Estados Unidos. “Por volta das 21h de 4 de fevereiro de 1974, veio a batida na porta do apartamento 4 do número 2.603 da rua Benvenue, em Berkeley, Califórnia”, descreve o FBI, a polícia federal americana, numa seção de seu site dedicada a investigações famosas.
Homens e mulheres armados invadiram a residência, agarraram a universitária, espancaram seu noivo, a colocaram dentro de um caminhão e zarparam dali. “Assim começou um dos casos mais estranhos da história do FBI.”
Num primeiro momento, Patty virou moeda de troca do autointitulado exército, que dizia querer “unir todas as pessoas oprimidas numa força de combate e destruir o sistema do estado capitalista”.
Ela tinha 19 anos e passou quase dois meses dentro de um armário com os olhos vendados enquanto seus sequestradores demandavam como resgate doações milionárias de comida e dinheiro para os pobres.
Tudo isso até ela se juntar ao grupo que a colocou no cativeiro. Em abril daquele ano, a jovem apareceu em vídeo dizendo que a partir dali fazia parte das forças que lutavam para libertar os oprimidos. Teko, um dos líderes do movimento, se apresentava como “um revolucionário branco” em combate pela igualdade social e racial.
Nem duas semanas se passaram, e Patty foi vista em outro circuito de câmeras, o de um banco assaltado pela facção batizada com uma referência à simbiose, o processo biológico em que diferentes organismos vivem juntos em harmonia.
A relação harmônica entre Patty e seus agressores transformados em camaradas durou pouco. Nesse período, a jovem dizia ter mudado o nome para Tania e se deixou fotografar no que Jeffrey Toobin, um de seus muitos biógrafos, chamou de a Mona Lisa dos anos 1970: ela de boina e arma empunhada, um olhar lançado ao horizonte estilo Che Guevara, em frente à bandeira com o logo do Exército Simbionês, uma cobra de sete cabeças.
Naquele mesmo 1974, seis membros do grupo morreram num tiroteio com a polícia em Los Angeles. A fugitiva Patty acabou presa só no ano seguinte. Ao ser fichada na prisão, listou como ocupação “guerrilha urbana”. Depois instruiu seu advogado a usar a imprensa para transmitir um recado, segundo uma reportagem publicada à época pela revista Time: “Diga a todos que estou sorrindo, que me sinto livre e forte e envio minhas saudações e amor a todas as irmãs e irmãos aí fora”.
Toobin diz que a herdeira de Hearst via as ações das quais foi acusada como travessuras e arrecadação de fundos para uma causa maior. Em 1976, ela foi condenada a sete anos de prisão por seu papel na organização extremista. Passou quase dois anos presa, até ter sua pena reduzida pelo então presidente Jimmy Carter (1977-1981). Em 20 de janeiro de 2001, no último dia de seu segundo mandato, o então ocupante da Casa Branca, Bill Clinton (1993-2001), lhe concedeu perdão pelos crimes imputados.
Nos primeiros dias de cárcere, segundo Toobin, Patty escreveu a um amante sobre “uma revolução” em andamento nos EUA. “Menos de um mês depois, ela estava pedindo maquiagem para sua irmã Anne.” Queria delineador, rímel e brilho labial.
Na autobiografia “Every Secret Thing” (cada coisa secreta, em livre tradução), Patty evocou lavagem cerebral para explicar sua temporada criminosa. Também disse que alguns integrantes do Exército Simbionês a repreendiam por usar palavras “que as pessoas pobres não entenderiam”, como “panaceia” e “recalcitrante”, que inseria “inconscientemente no discurso”.
Décadas mais tarde, ela disse não ser “nenhum segredo” que foi “sequestrada, estuprada e torturada aos 19 anos”. Na ocasião, acusou Jeffrey Toobin de lançar uma biografia não autorizada, em 2016, que “cita um dos meus sequestradores como fonte principal, romantiza minha violação e chama o meu rapto de uma ‘aventura divertida’”.
Em 2002, Larry King (1933-2021), o lendário entrevistador americano, a questionou sobre síndrome de Estocolmo, que faria com que reféns se afeiçoassem a seus sequestradores. “Sabe, eu não tinha livre arbítrio”, respondeu Patty. “Praticamente não o tive até ficar separada deles por cerca de duas semanas.” Foi quando, ainda em custódia e esperando julgamento, começou a repudiar sua aliança com o grupo que a raptou.
Também contou a King que havia atuado numa montagem da peça “Os Monólogos da Vagina” e que “as coisas estão boas”. Estava casada havia 23 anos com Bernard Shaw, um policial contratado pela família Hearst como guarda-costas de Patty após a prisão.
Ela também fez pontas nas séries de TV “Frasier” e Veronica Mars”, além de “Cry-Baby” e “Mamãe É de Morte”, dirigidos por John Waters, conhecido no cinema como “papa do trash”. Os dois se conheceram no Festival de Cannes, em 1988, quando ela divulgava uma cinebiografia sobre sua história. Sua vida dá mesmo um filme.