Em busca de visibilidade, brasileiros de 8 a 13 anos enviam fotos e vídeos para perfis com milhares de seguidores. Páginas repostam os conteúdos e ainda acrescentam áudios de funks com versos maliciosos. ‘Se garante na beleza?’: perfis repostam fotos de crianças e acrescentam áudios de funk
Ao som do funk “Piranha, safada, brotou pro combate”, um post público no TikTok mostra um vídeo de uma brasileira de 11 anos sorrindo para a câmera. No Instagram, a trilha sonora da foto de outra menina, de 9 anos, é “Então, vem, vem, b*c*ta criminosa. Eu sei que eu sou feio, mas é só [de] fuzil que tu gosta”.
➡️Esse é o resultado da dinâmica do desafio “Se garante na beleza?”, lançado por dezenas de perfis dedicados exclusivamente a isso nas redes sociais. Nos comentários, estão outras crianças e pré-adolescentes implorando para também aparecerem nessas páginas: “Me escolhe, me escolhe!”.
Funciona assim:
Para ter sua foto divulgada, o interessado (em geral, de 8 a 13 anos, com perfil fechado e poucos seguidores) procura uma conta que proponha esse “concurso”.
Em seguida, envia um “oi” por mensagem privada ao administrador da página.
Começa, então, um período de torcida e de ansiedade para ser escolhido.
Se for selecionado, receberá um “oi” como resposta e terá de dizer seu nome e sua idade, responder o “se garante na beleza?” e enviar uma foto ou vídeo de si mesmo.
O diálogo inteiro (com os dados pessoais e a imagem do pré-adolescente) é postado para centenas ou milhares de seguidores, que avaliarão se quem aparece ali é, de fato, “bonito”.
Normalmente, quem reposta a imagem dos “escolhidos” ainda acrescenta um áudio de funk com letras maliciosas e palavrões. E há variações: um dos perfis no Instagram pergunta também à criança da foto se ela é… solteira.
Todos os dados tornam-se públicos e ficam disponíveis para qualquer um com acesso à internet.
🚨O que provavelmente esses jovens não imaginam é que as imagens podem parar em sites de pornografia, em redes de pedofilia ou nas mãos de criadores de deepfake — que fazem montagens maliciosas com áudio e vídeo [leia mais sobre os riscos abaixo].
“Procurei a foto mais bonitinha que eu tinha e mandei. A gente quer participar para ver se outras pessoas — ou até famosos — gostam”, relatou ao g1 uma menina de 11 anos que apareceu em uma dessas páginas. “Não ligo para pessoas assim [mal-intencionadas].”
➡️Veja o exemplo abaixo. Uma garota de 12 anos enviou sua foto e recebeu comentários como “super iria, mas tenho vergonha” e “essa tem doze só de preguiça”.
Perfil compartilha dados de criança de 12 anos
Reprodução/Redes sociais
➡️Neste outro perfil, um garoto de 8 anos escolheu uma imagem sua sem camiseta e comemorou que foi selecionado no desafio: “Eu sou o menino do vídeo, gente, obrigado pelos comentários!”. Quais comentários? Um deles era “quando ele crescer, eu pego para mim”; outro dizia “tem cara de gay”.
Imagem do ‘Se garante na beleza?’ foi borrada pelo g1 para proteger identidade da criança
Reprodução/Redes sociais
🔴O que alegam as plataformas?
O TikTok e o Instagram estabelecem em seus regulamentos que só aceitam contas de pessoas acima de 13 anos.
Ao g1, a Meta, dona do Instagram, afirmou que não permite “contas e conteúdos que explorem ou coloquem crianças em risco. Usamos uma combinação de tecnologia e revisão humana para identificar e remover interações abusivas em nossos serviços, e cooperamos com autoridades locais nesta área.”
Já o Tiktok não havia respondido até a mais recente atualização desta reportagem.
🔴Quais os riscos dessa exposição?
Imagens de crianças são divulgadas sem o consentimento dos pais
Reprodução/Redes sociais
Ninguém deveria expor um menor de idade sem o consentimento formal dos pais ou dos responsáveis, explica Humberto Sandman, professor de Sistemas de Informação da ESPM e especialista em cibersegurança.
“As gerações mais novas não ligam tanto para a privacidade, talvez por não terem noção da tragédia que pode acontecer a partir da divulgação das fotos”, diz.
Segundo Sandman, as imagens podem:
ser matéria-prima para atos ilícitos de criminosos na internet;
gerar deepfakes, quando a inteligência artificial combina o rosto da foto com áudios ou imagens de outro contexto, produzindo uma cena falsa;
virar posts de sites ou fóruns de pornografia;
circular entre redes de pedofilia;
servir como meme em redes sociais;
gerar comentários depreciativos.
“Esse ‘desafio’ pode difamar crianças que não fazem ideia de para onde estão indo suas fotos”, afirma o professor.
🔴Mas por que o ‘se garante na beleza?’ cresceu tanto?
Desafio ‘Se garante na beleza?’ expõe fotos de crianças e pré-adolescentes
Reprodução/Redes sociais
A pesquisadora Andréa Jotta, especialista da PUC-SP em comportamentos relacionados à saúde mental no uso de tecnologias, explica que a autoestima das crianças e dos pré-adolescentes está cada vez mais associada às redes sociais: quantos comentários elogiosos eles vão receber? Quantos seguidores ganharão se aparecerem em um perfil de maior alcance?
“Esse é o valor que está sendo incutido nos jovens. Sem perceber, os pais acabam contribuindo para isso desde cedo, postando fotos e vídeos dos filhos o tempo inteiro. As crianças crescem codependentes da internet e dos ‘likes’”, diz.
O que pode ter começado como uma brincadeira de escola tomou proporções maiores e gerou dezenas de perfis de “se garante na beleza?”. Por quê? Segundo a pesquisadora, o desafio envolve justamente necessidades que costumam acometer os pré-adolescentes: de se reafirmar, de fazer parte de um grupo e de mostrar aos outros que “foi escolhido”.
“A gente não tem como mensurar as consequências disso. Quem disse que os donos das páginas são mesmo crianças [como afirmam as descrições dos perfis], e não pedófilos? Para cada foto postada ali, outras 1.000 não foram escolhidas. O que foi feito com elas?”, questiona Jotta.
‘Fui colocada em deepfake pornô pelo meu melhor amigo’
O que é deepfake e como ele é usado para distorcer realidade
🔴Como evitar que seu filho participe do desafio?
Crianças imploram para serem escolhidas no desafio
Reprodução/Redes sociais
De acordo com os especialistas ouvidos pelo g1, o primeiro passo é respeitar a norma de que crianças com menos de 13 anos não usem redes sociais.
É claro que haverá um risco de elas criarem um perfil sem os pais ou responsáveis saberem. Entra aí a importância da supervisão: já que é quase inevitável que seu filho não tenha contato com telas, você precisa estar sempre por perto nesses momentos. Qual jogo ele baixou no celular? A que vídeos assiste no Youtube? Costuma abrir o TikTok e o Instagram, mesmo que logado na conta de um adulto?
“O pessoal não percebe que a internet é a nossa ágora, a praça que está ali na frente de casa. Abandonar uma criança em frente à tela de forma desnecessária é deixá-la aberta a qualquer coisa do mundo. Por mais que você diga que não tem tempo [para supervisionar], será o responsável pelo que acontecer com seu filho”, explica Sandman.
O recomendado, segundo o especialista em cibersegurança, é ter uma conversa sincera em família, “explicando que a internet é, sim, uma ótima ferramenta em muitos sentidos”, mas que “o mundo também tem pessoas com más intenções”.
E o debate não precisa ficar só em casa: as escolas devem trazer à tona assuntos de segurança digital e privacidade em atividades com os alunos.
“Essas modinhas costumam se disseminar exatamente no âmbito escolar. Todos precisam estar envolvidos na prevenção”, diz Andréa Jotta.
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