Em outubro de 2001, poucos dias antes da queda do Talibã no Afeganistão, a Folha visitou centros de treinamento de voluntários islâmicos na Caxemira paquistanesa, onde jovens buscavam se preparar para lutar ao lado dos vizinhos contra os ataques americanos.
Invariavelmente, citavam o líder do responsável pela confusão, Osama bin Laden, o fundador da rede Al Qaeda, mas não nos termos que descreviam o saudita: líder terrorista, homicida em massa e agente do caos.
Para aqueles jovens, ele era um herói que desmascarava a hipocrisia de Washington ante os países muçulmanos. Eles se chocariam ao descobrir que suas crenças, ao menos por átimo do segundo das redes sociais globais, viraram realidade entre os mesmos ocidentais que pretendiam ver mortos ou submissos.
Na semana passada, um usuário da rede TikTok leu em uma postagem trechos da “Carta à América”, documento em que Bin Laden expunha suas ideias um ano depois do 11 de setembro de 2001, ápice de sua carreira de morte e destruição, planejado enquanto se escondia sob as asas do Talibã.
O contexto era a guerra de Israel contra o Hamas, disparada depois que o grupo terrorista palestino matou 1.200 pessoas num mega-ataque em 7 de outubro. A dura retaliação israelense, com mais de 14 mil mortos, tem levado a protestos pelo mundo que não raro confundem proteção de civis e antissemitismo. Bin Laden criticava o apoio americano a Tel Aviv.
Foi um sucesso incontrolável de cliques, até que a rede retirou o conteúdo do ar. O estrago estava feito, segundo as métricas disponíveis. Ao menos por alguns dias, Bin Laden teve seu objetivo de vida vingado: converteu seus rivais infiéis.
Mas quem foi Bin Laden, um personagem responsável, entre muitas outras coisas, por você não poder entrar num voo internacional com mais de 100 ml de líquidos na bolsa e passar por revistas prisionais nos aeroportos?
Nascido em 1957 na capital saudita de Riad, ele era o filho de um dos maiores magnatas do país, Mohammed bin Laden, dono de uma construtora ligada à família real do reino, que abraça desde o século 18 uma versão integrista do sunismo, o ramo majoritário do muçulmanismo, chamada wahhabismo.
Bin Laden era o 17º de 52 filhos, e são notórias suas fotografias em viagens à Europa quando jovem. Ele foi se radicalizando na universidade Rei Abdulaziz, onde cursou religião e economia nos anos 1970.
A partir da invasão soviética do Afeganistão, em 1979, ele usou sua fortuna para apoiar os mujahedin (“guerreiros santos”) que lutaram contra os comunistas ao longo de uma década. Numa dessas ironias históricas, os maiores apoiadores externos da rebelião foram os americanos, interessados em ver o vexame militar que acabou concretizando-se para seus rivais na Guerra Fria.
Só que Washington deixou todos para trás, inclusive o Paquistão que servia de rota de envio de armas para os rebeldes. O Afeganistão ficou dividido entre tribos rivais e acabou caindo numa guerra civil que só se resolveria parcialmente em 1996, com a ascensão do Talibã, apoiados pelo vizinho.
Bin Laden tinha outros planos. Um ano antes do fim da invasão soviética, em 1988, fundou com outros radicais a rede Al Qaeda (“a base”) na cidade fronteiriça paquistanesa de Peshawar. Juraram seguir o combate aos infiéis a seus olhos, que agora seriam o que chamavam de Ocidente decadente.
Em 1989, voltou ao país natal, mas acabou sendo expulso em 1991, após criticar o apoio da família real aos americanos na primeira guerra contra o Iraque. Fugiu para o Sudão, onde começou a treinar seu Exército particular protegido pelo governo local. O arranjo durou até 1996, quando a pressão dos EUA e da ONU levou Cartum a expulsar Bin Laden e seus associados.
Com a ascensão do Talibã, cujos líderes lutaram com os mujahedin, foi para o Afeganistão. De lá, bolou algumas das ações mais espetaculares contra os EUA na história. Em 1998, duas embaixadas, na Tanzânia e no Quênia, foram bombardeadas, deixando 224 mortos em uma ação com sua marca registrada: a simultaneidade.
Dois anos depois, matou 17 ao explodir um bote-bomba ao lado do destróier USS Cole, que estava no Iêmen.
Tudo isso antecedeu o 11 de setembro, quando cerca de 3.000 pessoas morreram em Nova York, Washington e na queda de um dos aviões usados no ataque que caiu na Pensilvânia. Os EUA, e o mundo, entraram em choque, alterando a percepção com que o terrorismo era visto.
A Al Qaeda ainda teria protagonismo em ao menos dois grandes ataques antes de perder tração, ambos contra o sistema de transporte de capitais europeias. Um em 2004 em Madri com 193 mortos, e outro em Londres, em 2005, com 52.
O Talibã pagou o preço pela “melmestia”, a hospitalidade que é devida por todo anfitrião da etina do grupo, a pashtun, e foi desalojado do poder. O grupo, que nunca foi só terrorista, mas também uma agremiação que buscava domínio territorial, se reagrupou, voltando ao poder após a retirada americana do país, em 2021.
A Al Qaeda aproveitou a ascensão da internet para se tornar numa espécie de franquia do terror, sem coordenação central muito eficaz além da propaganda.
Quando foi morto por um comando americano, escondido em uma casa próxima da academia da elite militar do Paquistão, em Abbottabad, Bin Laden já era mais lenda, “o homem mais procurado do mundo” que eludira dois presidentes americanos e definhava, do que operador ativo. Ele foi executado a tiros ao lado de quatro pessoas, inclusive um de seus 19 filhos com 4 mulheres, Khalid, 23.
Bin Laden tinha 54 anos e seu corpo foi jogado ao mar após confirmação de identidade por exames de DNA. A Al Qaeda segue ativa, mas perdendo protagonismo no mundo do terror devido à eliminação de suas lideranças e pela emergência de grupos ainda mais radicais, como o Estado Islâmico nos anos 2010 no Iraque e na Síria.