Ansiosos com a viagem de lua de mel com destino a Lisboa, marcada para a manhã do dia seguinte, os recém-casados Evelina e Francisco Lopes decidiram ouvir um pouco de rádio à noite, antes de irem dormir, em 24 de abril de 1974. A emissão, porém, logo ampliou a apreensão do jovem casal, que rapidamente se deu conta de estar escutando uma canção que era censurada pelas autoridades.
Eles estavam testemunhando o começo da Revolução dos Cravos: um movimento liderado por setores descontentes das Forças Armadas que colocaria fim, praticamente sem violência, aos 48 anos de ditadura em Portugal, o regime de exceção mais longevo da Europa no século 20.
“Tínhamos o hábito de ligar o rádio. De repente, começamos a ouvir aquela música e a estranhar”, relembra Evelina, 72. “Sabíamos que o regime já estava podre, então imaginamos que havia qualquer coisa ali”.
Francisco, 73, recorda que as “músicas foram a senha para o começo do golpe”. Primeiro “E depois do Adeus”, de Paulo Carvalho, seguida, meia hora depois, da então censurada “Grândola, Vila Morena”, de Zeca Afonso, marcando o começo visível da revolução.
Pouco depois, outra novidade: notícias do desenrolar dos fatos políticos, sem filtros, também eram passadas pelos jornalistas. “Começou-se a falar que as tropas [da revolução] iam em direção a Lisboa, que tinham saído de Santarém. Aquilo nunca acontecia antes, nós não sabíamos de nada do que estava acontecendo por causa da censura”, diz Evelina.
O casal recebeu a Folha em casa, no município do Bombarral (75 km de Lisboa) no dia seguinte à comemoração das bodas de ouro do casamento, ocorrido em 21 de abril de 1974. Felizes com a redemocratização do país, eles lamentam, em tom de brincadeira, não terem tido a oportunidade de viajar em lua de mel.
Com o serviço militar obrigatório ainda em vigor –a exigência já era de quatro anos para os homens no fim do regime–, Francisco teve de retornar ao trabalho no Exército após os 15 dias de licença por conta do matrimônio.
Natural do Ribatejo, uma zona rural no oeste do país, o casal conta que não chegou a cogitar outro destino, além de Lisboa, devido às muitas limitações impostas no período.
“Não íamos para grande coisa, mas queríamos passear na cidade, andar de barco no Campo Grande, ir ao cinema. Naquela época era impensável ir para fora do país. Portugal estava completamente isolado”, diz Evelina.
Francisco relembra as dificuldades para a obtenção de documentos de viagem, que precisavam de autorização do governo. “Eu nunca consegui tirar meu passaporte. Eu tentei, mas me proibiram”, afirmou. “Eles não queriam que as pessoas saíssem de Portugal, e nem sequer que soubessem sobre o que se vivia aqui.”
Para os homens, a dificuldade de acesso ao documento era ainda maior, uma vez que a guerra contra a independência das colônias africanas, iniciada no começo da década de 1960, exigia a incorporação coercitiva de cada vez mais recrutas nas Forças Armadas. Nos 13 anos em que durou o conflito, em torno de 1 milhão de homens foi mobilizado.
Com tantos militares contrariados em serviço, a insatisfação se espalhava pelas tropas, um dos principais polos de articulação para a derrubada do regime. “O descontentamento era generalizado”, diz Francisco. “Eu só fiquei a saber da dimensão dos envolvidos quando houve o 25 de abril”.
A Revolução dos Cravos também revelou a orientação política de muitos portugueses, que antes escondiam suas opiniões por conta do aparato repressor da ditadura, personificado pela polícia política, a Pide (Polícia Internacional e de Defesa do Estado).
“Por isso eu me revolto quando as pessoas defendem o que se vivia naquela época”, diz Evelina. “Nós saíamos para beber um café e não sabíamos se a pessoa que estava na mesa ao lado ou do outro lado do balcão era da Pide. Aliás, mesmo que não fosse da polícia, podia ser um informante”.
O casal conta que conheceu pessoas, além de familiar, que foram presas pela polícia política da ditadura. “Eram pessoas que pareciam ter uma vida absolutamente banal. Era só por serem comunistas, por defenderem ideias comunistas ou simplesmente ideias contrárias ao regime”, diz Francisco.
Embora a revolução tenha acabado com a ditadura, o casal recorda que o clima de tensão continuou em Portugal por mais de um ano, enquanto as forças políticas se organizavam e lutavam por seu espaço na nova realidade.
“Quando se deu o 25 de abril, os militares tomaram o governo quase que de assalto. Depois, estiveram mais de um ano no controle. Foi um verão muito agressivo também”, relembra Francisco.
O nascimento da primeira das três filhas aconteceu no verão de 1975, “ainda com o país em ebulição’.
As liberdades vieram aos poucos. Mesmo depois do 25 de abril e já fora do Exército, Francisco conta que ainda precisava de autorização militar para se ausentar do país. “Eu tinha de ir às vezes em serviço à Espanha. Mesmo para ir aqui ao lado, eu precisava de ter uma autorização de um quartel para poder sair, porque até os meus 35 anos estava debaixo da alçada militar.”
Além das liberdades e do fim da censura, o casal destaca o legado positivo da Revolução dos Cravos nas condições de vida dos portugueses.
“Antigamente, qualquer pessoa que tivesse uma quinta [fazenda] e uns animais já era considerado rico, porque os outros eram muito pobres”, disse Evelina.
“A vida era muito diferente. Era um atraso. Havia muita fome. Agora, pode não se passar bem, mas há muitas ajudas. Eu tinha 11 anos na primeira vez em que calcei uns sapatos, porque não havia dinheiro. Eu tinha de andar descalço porque os meus pais não tinham dinheiro para comprar os sapatos”, destacou Francisco.
Em busca de melhores condições de vida, muitos portugueses partiam em direção a outros países, muitas vezes de forma clandestina. A França e o Brasil foram destinos populares para os lusitanos nos anos de ditadura.
“Já houve muitos portugueses pobres lá fora. Por isso, eu não posso com esse discurso de que agora já não querem cá os estrangeiros”, diz Evelina, que afirma não querer conversa com pessoas que manifestem essas opiniões.