Victoria é uma adolescente venezuelana descrita pela mãe, Carmen Murillo, como “nobre, empática e com um senso humanitário”. “Una chica con muchos sueños”, diz Carmen em um vídeo que rodou as redes sociais com um apelo que nenhuma mãe deseja fazer.
No último ano do colégio, membro de uma orquestra sinfônica e com apenas 16 anos, Victoria foi detida três semanas atrás enquanto caminhava na rua com uma prima. Eram 24 horas após a contestada reeleição do ditador Nicolás Maduro. Naquele 29 de julho, ao menos outras 590 pessoas foram detidas por motivos políticos.
Desde então, Victoria está sem contato com a família, sem direito a um advogado privado e sem seu caso detalhado. Sua mãe pede que seja liberada. É o modus operandi do que tem ocorrido na Venezuela, onde 1.400 pessoas foram detidas desde o pleito em uma onda ampla de repressão. Como ela, outros 116 dos detidos são menores de 18 anos.
É a terceira grande onda repressiva que o país vive na última década, que coincide com o maior nível de autocratização do país e com o comando ininterrupto do ex-sindicalista Nicolás Maduro.
Nas palavras de Oscar Murillo, diretor da Provea, a mais respeitada organização de direitos humanos da Venezuela, “um aumento dos mecanismos de terror do Estado, além de uma ampliação das formas de castigar os cidadãos e converter toda a sociedade em suspeita”. “De um processo autoritário, passamos a um totalitário”, afirma.
Desde que viu diferentes classes sociais saírem às ruas para afirmar que houve fraude na eleição, Caracas ativou um modelo sistemático de repressão que transformou a vida no país.
Jornalistas e ativistas sociais têm buscado modelos mais avançados de encriptação de emails e apagado suas mensagens em aplicativos como o WhatsApp para que suas conversas não cheguem ao regime e não sejam usadas contra eles de alguma maneira.
Moradores do barrio (favela) caraquenho 23 de Enero publicam fotos de suas casas marcadas com um X, que teria sido colocado ali para acusá-los de apoiarem a oposição. Familiares de detidos temem falar com a imprensa e com isso despertarem retaliações contra seus parentes. A autocensura começa a imperar.
Advogados também relatam a ampliação da prática de extorsões por agentes de segurança. Diante da ausência de garantias judiciais e da erosão da institucionalidade policial, membros das forças exigem dinheiro de famílias para não levar seus membros detidos.
A onda repressiva atual traz à memória outros períodos recentes na Venezuela, 2014 e 2017, marcados por amplos protestos populares apoiados pela mesma oposição que hoje afirma ter vencido nas urnas e que foram reprimidos a mão de ferro. Mas há diferenças.
Mais de 1.090 pessoas foram presas somente nos três primeiros dias que seguiram o pleito, quando dizia-se nas ruas de Caracas que “os barrios haviam descido”, uma referência ao fato de que partes dos moradores das favelas, como a comunidade de San Blas na famosa Petare, saíram de seus lares e foram protestar em partes de classe média da capital.
É quase 80% o número de detenções que ocorreram no agora longínquo abril de 2017, considerado o ciclo mais importante de conflitos sociais desde a revolta popular do Caracazo de 1989. A soma e a checagem das prisões têm sido conduzidas pela também respeitada ONG Foro Penal, que há pelo menos uma década monitora o tema no país.
Desta vez a maioria dos detidos fica incomunicável e não têm direito a contratar um advogado. Também parece ter sido aposentada a prática da chamada “porta giratória”, que antes o regime usava para amenizar a repercussão de suas práticas. Com ela, Caracas prendia muitas pessoas, mas ao mesmo tempo liberava grandes grupos dias depois.
“O efeito intimidatório das prisões, para levar a um apaziguamento das pessoas, parece mais importante do que o custo político das detenções”, diz Alfredo Romero, que preside a Foro Penal. A maioria dos detidos é acusada de instigação ao ódio e terrorismo, resistência à autoridade e obstrução de vias públicas. São crimes que podem levar a até 20 anos de prisão.
Segundo os relatos feitos à reportagem, muitas audiências dos casos dos detidos têm sido feitas de maneira coletiva. A maioria dos presos é de homens jovens, e muitos são das classes mais baixas da sociedade, diferentemente das ondas repressivas de 2014 e 2017, quando as fileiras dos detidos tinham ampla presença de universitários contra o regime.
Os últimos dias também foram marcados pela gestada aprovação de uma lei de fiscalização das ONGs venezuelanas. Os aplausos foram efusivos no plenário da Assembleia Nacional, dominada pelo chavismo.
O texto se assemelha ao de leis que estão em vigor em outros Estados autoritários, como a Nicarágua do ditador Daniel Ortega, que afaga Maduro. A legislação exige que as organizações apresentem um calhamaço de documentos ao Estado e diz que vai coibir o financiamento internacional das ONGs. Não explica, porém, quais seriam as consequências para isso.
Além das prisões em massa, a Provea mapeou ao menos 24 mortes em meio aos protestos, sendo uma delas a de um membro da Guarda Nacional que, no entanto, estava à paisana. Algumas dessas pessoas se identificavam com o chavismo. O autoritarismo, afinal, imprime sua marca até em quem ainda se identifica com a ditadura.