Uma ex-funcionária da ONU que trabalhou durante uma década na região de Darfur, no Sudão, para a missão das Nações Unidas para a União Africana, Unamid, disse à ONU News como teve que “evitar pisar nos corpos nas ruas” enquanto fugia para salvar a sua vida indo para o Chade.
O Sudão, e Darfur em particular, enfrentam uma crise humanitária e de segurança após a eclosão de uma guerra em abril de 2023 entre o exército sudanês e as Forças de Apoio Rápido, RSF. No entanto, os conflitos étnicos em Darfur remontam há mais de duas décadas.
O ataque a El Geneina
Fátima*, residente da cidade de El Geneina, no estado de Darfur Ocidental, onde milhares de pessoas foram sido mortas, escapou com a sua família através da fronteira enquanto milícias rivais lutavam pelo controle da sua cidade.
Ela afirmou que ficou presa com seus familiares dentro de casa “durante mais de 57 dias, enquanto as milícias atacavam e matavam sistematicamente as pessoas, com base na sua etnia. Segundo Fátima, “eles não pouparam mulheres, crianças ou idosos”.
Milhares de pessoas foram deslocadas por mais de 20 anos de conflito em Darfur e muitas deslocam-se regularmente entre os campos de refugiados e El Geneina, especialmente no início do ano ou durante o Ramadã, quando ocorrem assassinatos, deslocamentos e destruição.
Durante este período, os mercados, escolas e instituições governamentais são fechados. Depois, quando os ataques param, as pessoas tentam retomar as suas vidas normais. Quando eclodiu a última guerra, em abril passado, Fátima pensou que seria a mesma coisa, mas ela disse que “infelizmente, foi diferente”.
Confira o relato em primeira pessoa:
57 dias de destruição
“Vi homens armados, alguns dos quais estrangeiros, que cercavam a cidade pelos quatro lados. Como jornalista, fui a uma área elevada para tirar fotos e os vizinhos estavam todos olhando pelas janelas. Os milicianos disparavam e gritavam sobre o dia do Juízo Final, dizendo que trariam destruição e morte à Terra.
Ficamos presos dentro das casas e tivemos que nos esconder debaixo das camas. Havia balas perdida por toda parte e eu podia ouvir pessoas gritando nas ruas e trocando tiros.
A guerra durou 57 dias na zona sul de El Geneina e bairros inteiros foram destruídos. Os milicianos trabalhavam de forma sistemática, indo de casa em casa matando pessoas. Os atiradores também estavam escondidos nos telhados e miravam em todos que viam. Houve morte de uma forma que não consigo descrever.
Ameaças e fuga
Os milicianos trabalharam em duas equipes, uma focada em matar pessoas e a outra em saquear suas propriedades. Alguns dos homens armados não falavam árabe e ameaçaram matar-nos se não lhes déssemos ouro e dinheiro.
Pessoas mascaradas entraram em minha casa e uma delas, que parecia me conhecer, me disse: ‘Você é jornalista, antigamente fazia reportagens, mas agora não pode.’ Eles levaram meu telefone e computador e os destruíram diante dos meus olhos, dizendo-me que eles estavam observando cada movimento meu e que se eu escrevesse alguma coisa, eles me matariam.
Meu marido me disse para sair de casa e seguir em direção aos bairros do norte. Peguei meu bebê e fui com minha vizinha que havia dado à luz dois dias antes. Ela carregou o bebê enrolado em um pano e trouxe o resto dos filhos.
Encontramos corpos caídos nas ruas. Uma família inteira, mulheres e crianças, estavam deitadas em frente à suas casas. Havia tantos corpos nas ruas que era difícil andar e tínhamos que evitar pisar neles.
Árvore dos mortos
Chegamos a um lugar tranquilo e achamos que era seguro. Pensamos ter sentido cheiro de churrasco, mas logo descobrimos que eram centenas de cadáveres queimados. Um dos atiradores fumava um cigarro enquanto observava os corpos fumegantes.
Ficamos assustados e mais tarde pudemos ouvir os vizinhos repetindo em voz alta a shahada, uma declaração islâmica de fé em Deus, em preparação para a morte. Ouvi um homem gritando por socorro e logo depois ouvi o som de tiros e sua voz desapareceu.
Há uma árvore em El Geneina que os militantes chamavam de “árvore dos mortos”, para onde costumavam levar as pessoas para serem executadas por pelotões de fuzilamento. Os homens recusaram-se a enterrar os corpos e ninguém mais foi autorizado a fazê-lo ou mesmo a perguntar sobre os desaparecidos.
Quando a situação se acalmou e as pessoas começaram a procurar seus parentes desaparecidos, diziam-lhes para irem até a árvore. As mulheres não foram autorizadas a ir, apenas os homens foram autorizados.
“Perdi tudo o que já possuí”
Fugi de casa às pressas e deixei todo o meu dinheiro, objetos de valor e ouro, então pedi dinheiro emprestado e aluguei um carro para levar meu filho e familiares até Adré, uma cidade no Chade. No primeiro dia voltamos porque era muito perigoso e no dia seguinte quando tentamos novamente a viagem, homens armados pararam o carro e roubaram os nossos pertences.
Acabamos por chegar ao campo de refugiados em Adré, mas muitas pessoas morreram no caminho, muitas crianças perderam os pais. O Exército chadiano ajudou a transportar muitos dos refugiados e alguns dos feridos de El Geneina para os campos e forneceu-lhes água e alimentos.
O sofrimento nos campos do Chade é grande, mas é menor do que aquele que experimentámos na guerra. Eu estava em um estado psicológico muito ruim. Não conseguia me concentrar em quem falava comigo e perdi a noção dos dias e do tempo, mas agora me recuperei, graças a Deus.
Meu marido, que ficou em El Geneina, chegou ao acampamento há duas semanas.
Perdi tudo o que já possuía. As milícias saquearam a nossa casa e levaram tudo, até as portas. Ouvimos dizer que começaram a demolir e a retirar os tijolos, e temo que quando voltarmos não encontraremos nada além de terra árida”.
*O nome verdadeiro foi alterado por motivos de segurança.