Os bombardeios israelenses sobre o Líbano transformaram a vizinha Síria —até há pouco tempo um país do qual se queria fugir— em receptora de milhares de pessoas.
Mais de 400 mil já deixaram o território libanês rumo ao sírio desde 23 de setembro, quando a ofensiva de Tel Aviv se intensificou. A maior parte deles, cerca de 300 mil, é de refugiados sírios, forçados a retornar para o inferno da guerra civil do qual tinham conseguido escapar.
“O fato de que tantos estão decidindo voltar para uma das grandes catástrofes humanitárias atuais mostra o nível de medo e de desespero que existe hoje no Líbano”, diz Will Todman. Especializado na questão dos refugiados sírios, Todman é membro sênior do CSIS (Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais), com base em Washington.
A guerra civil na Síria remonta a 2011. Começou com protestos pacíficos contra o ditador Bashar al-Assad. A repressão do regime radicalizou a oposição, e as potências se envolveram, em especial Estados Unidos e Rússia —Moscou é um antigo aliado de Assad. Surgiram grupos terroristas, como o Estado Islâmico, agravando a situação. Mais de 500 mil morreram.
O conflito levou 6,5 milhões a deixar o país, a maior parte em territórios vizinhos. Cerca de 1,5 milhão foi para o Líbano. É a primeira vez que os sírios voltam ao seu país de origem em números tão expressivos — e de modo tão veloz.
Os ataques israelenses, que Tel Aviv afirma visarem a milícia extremista Hezbollah, já deixaram mais de 2.000 mortos no Líbano. Além disso, a vida dos refugiados sírios na última década não foi fácil. Eles não têm acesso a serviços básicos no país vizinho. Não têm nem direito a trabalhar, com exceção de setores específicos, como a agricultura. Isso faz com que estejam, nas palavras de Todman, “entre os grupos mais vulneráveis” vivendo no Líbano.
A situação piorou à medida que o país afundou no que o Banco Mundial descreve como uma das piores crises econômicas do mundo desde o século 19. Desde então, afirma Todman, políticos libaneses têm usado os refugiados como “bodes expiatórios”, fomentando um crescente sentimento popular antissírio.
Com os bombardeios israelenses, os sírios estão no fim da fila para receber auxílio. Há relatos de locadores expulsando sírios de suas casas para abrigar famílias libanesas e de abrigos que se recusam a recebê-los, sob o argumento de não terem espaço.
Não há muitas informações confiáveis sobre o êxodo sírio. Analistas, porém, estimam que seja um movimento formado por, em grande parte, mulheres e crianças. Homens evitam voltar porque, uma vez em seu país, podem ser recrutados para o Exército —e teriam de lutar contra as forças rebeldes na guerra civil. Os combates arrefeceram, e Assad já cantou vitória. Mas o regime ainda não controla todo o território.
O trajeto em si já é perigoso, afirma Carlos Naffah, especialista na questão dos refugiados sírios no Líbano. O caminho entre Beirute e Damasco passa pelo vale do Beqaa, um dos alvos dos bombardeios israelenses. Tel Aviv já chegou a atacar a região do controle de passagem na fronteira.
De modo simplificado, a ditadura síria controla hoje as regiões centrais, incluindo a fronteira com o Líbano. Isso significa cerca de 70% do território. Forças rebeldes ocupam o noroeste, enquanto grupos curdos estabeleceram suas bases no nordeste. Há também alguns bolsões do Estado Islâmico, apesar de enfraquecidos.
Mesmo assim, segundo Naffah, a situação é mais estável do que no Líbano. “Temos que admitir que hoje a Síria é mais segura do que aqui”, afirma. Ele fala de Beirute, por telefone, em um dos poucos momentos em que há sinal de celular. “Na Síria, você ainda pode ir de um vilarejo para o outro, enquanto no Líbano hoje nós temos medo de pegar a estrada.”
Naffah menciona, também, algo que muitos brasileiros residentes no Líbano têm dito à reportagem: o isolamento do país. A fronteira sul, com Israel, é intransitável. A outra é com a Síria. Fora isso, a solução é pegar um avião no aeroporto de Beirute —que pode ser bombardeado e fechado a qualquer momento, como aconteceu no passado.
“Vamos ficar presos em uma situação catastrófica, num país que não tem agricultura nem reserva de grãos”, afirma. “Será uma grande Gaza.”