A cerca de 40 minutos de La Paz, El Alto é a expressão de um conjunto de dilemas da Bolívia. É uma região altamente informal, que vê o tráfico de drogas derrubar a segurança pública, e é também um dos mais importantes redutos evistas, base de Evo Morales.
Dois dias após uma tentativa frustrada de golpe de Estado no país que esse personagem político governou por três mandatos consecutivos, de 2006 a 2019, é o seu nome o que aparece nas falas da população.
A grande dúvida é se ele concorrerá nas eleições do segundo semestre de 2025. A Justiça diz que não —em teoria só se pode ser presidente do país por dois períodos, seguidos ou não. Evo já alterou a regra em seu terceiro mandato. Ele afirma que concorrerá. “Por bem ou por mal.”
A questão-chave é que a disputa entre Evo e seu ex-pupilo, o atual presidente e seu ex-ministro, Luis Arce, tem ajudado a drenar a popularidade do governo que outrora Evo ajudou a levar ao poder. Por isso o sindicalista é visto como elemento definidor do que se passará na Bolívia nas próximas semanas e meses.
Analistas comentam que Evo pode escolher arrefecer sua oposição ao governo do ex-aliado e tornar as coisas mais fáceis. Ou pode —e é alta a aposta nessa opção, dados os seus “genes de enfrentamento”, como diz um especialista boliviano— voltar a chamar sua base às ruas para criticar Arce, como já o fez recentemente, com protestos e bloqueios.
Evistas têm capitalizado um período de dificuldades econômicas que vive o país andino. Expressão disso é El Alto, esse município de apenas 36 anos que, com o despejo de verba durante os anos de Evo no poder, tornou-se atrativo econômico e a segunda cidade mais populosa do país, com 1 milhão de pessoas, atrás apenas de Santa Cruz.
Esse reduto de indígenas aimara é baseado no comércio informal, com gigantescas avenidas de vendedores sentados no chão. No bairro 16 de Julio, são as mulheres aimara com suas frutas e verduras às margens das ruas que chamam atenção.
“Agora vendemos bem menos”, diz Victoria, 45. Ela aponta para sua caixa de pitaias amarelas. “Antes cada uma saia por 5 bolivianos, agora tenho de cobrar 10. A caixa, que antes comprava por 250 bolivianos dos vendedores que importam, agora me sai por 550 ou 600 bolivianos. E demoramos a vender. Às vezes o produto estraga. Com Evo não era assim.”
É um exemplo de um desafio que cresce. Muitos importadores, como os atacadistas que compram frutas no Peru e no Chile, próximos a El Alto, têm dificuldade para comprar dólares, já que a moeda escasseou na Bolívia. No mercado paralelo, pagam muito mais caro. Por isso sobem o preço da revenda de seus produtos para pessoas como a vendedora informal Victoria.
A vendedora de leite e iogurtes Mónica Eliana, 28, faz um relato semelhante. E, quando questionada pela reportagem sobre o que achou da tentativa de golpe, diz que não tem dúvidas de que o próprio presidente Arce o tramou —ele nega essa acusação feita pelo general acusado de comandar a tentativa. “Como um golpe de verdade ia ser dado no meio da tarde? Qualquer militar escolheria a noite para isso, quando não há ninguém.”
A alguns quarteirões está o bairro de La Ceja, um dos mais importantes e também perigosos. É onde de madrugada os moradores de La Paz sobem —a diferença de altitude da capital para El Alto é de cerca de 800 metros— para comprar produtos e revender.
Outros dois comerciantes que falam sem querer se identificar dizem que Evo os entende por ser um indígena. O economista Arce, por sua vez, estaria tentando resolver as coisas, mas sem saber pelo que a população passa.
Em consenso, as pesquisas locais de intenção de voto apontam que Evo tem uma base fiel de cerca de 30% dos votantes, mas que é altamente rechaçado, também, por uma parcela de ao menos 50%. Não há um líder claro que faça oposição à esquerda, ainda que o prefeito de Cochabamba, Manfred Reyes Villa, venha ganhando relevância.
Elogiado ex-ministro da Economia de Evo, e justamente por isso escolhido para disputar a Presidência, Arce tem colhido as más consequências do pós-pandemia, da alta dos preços internacionais e da falha do próprio período evista em antever que o gás, o ouro da economia boliviana, começaria a escassear. Evo se descreve como um potencial salvador da economia nacional.
Enquanto isso, os dois personagens-chave da política boliviana trocam farpas. Arce afirmou que a primeira pessoa para quem ligou quando confirmou que uma tentativa de golpe de Estado estava em curso foi Evo.
O ex-presidente confirmou, mas nesta sexta-feira (28) mandou sua indireta. “Eu disse a ele: ‘você deu poder demais ao Zúñiga [o chefe do Exército que liderou a tentativa] sem respeitar a institucionalidade.”
Também Arce mostrou insatisfação. “A diferença que temos com Evo é que queremos que o instrumento da política pertença às organizações sociais, não a uma pessoa em particular.” É uma clara sinalização de sua insatisfação com o populismo evista e a tentativa de seu padrinho político de voltar ao poder, ainda que não o possa.
No final da semana em que esse país andino quase viu os militares tomarem o poder, ainda há muitas perguntas em aberto. Mas uma certeza: a de que Evo Morales, um dos mais relevantes líderes da América Latina, é um elemento-chave para definir os rumos da nação.