Mais do que uma simples festa comunitária, a celebração dos 200 anos da imigração alemã no Brasil assumiu um tom de reconstrução para os moradores de São Leopoldo, na região metropolitana de Porto Alegre.
A cidade ainda se recupera dos impactos das chuvas no Rio Grande do Sul em maio, quando diques não foram suficientes para conter a enchente do rio dos Sinos. O mesmo rio foi a parte final da rota de 39 imigrantes de origem germânica que desembarcaram na região em 25 de julho de 1824.
Neste ano, a principal atração da data foi a reinauguração festiva do Museu Histórico Visconde de São Leopoldo, que conta a história dos colonos pioneiros.
No museu está a Bíblia com mais de 250 anos que escapou da enchente, salva às pressas por uma funcionária pouco antes de esvaziar o prédio. Também estão em exibição os restos do piano de mais de 120 anos destruído pela água, agora mais com um caráter histórico.
“Ao longo dos séculos os que nos precederam enfrentaram centenas de adversidades tão ou mais graves do que essa, desastres naturais, econômicos e muitas guerras”, disse Cássio Tagliari, presidente do museu. “Quis o destino que fosse essa catástrofe a nos lembrar, de maneira brutal, que a saga do nosso povo segue sendo escrita.”
É feriado no município, mas as obras continuam. Na esquina em frente ao museu, pedreiros trabalham na remoção de entulho de uma casa na qual a marca da água supera dois metros.
A Praça do Imigrante, que passava por reforma desde antes da cheia do rio dos Sinos, está sendo refeita. Nela, fica um pilar de pedra e tijolos erguido em 1924 para marcar o centenário da chegada dos imigrantes.
A poucas quadras dali, foi inaugurado nesta quinta-feira o monumento ao bicentenário, uma estrutura de cinco metros feita de aço, que mostra trabalhadores de mãos dadas.
O dia começou com uma cavalgada que partiu do bairro da Feitoria, primeiro assentamento da cidade antes da imigração alemã. O percurso terminou em frente ao museu, onde foi acesa a chama crioula, tradicional na cultura gaúcha. O ato deu início à EinwanderungsFest (Festa da Imigração), na presença de autoridades locais e de uma comitiva alemã.
A justaposição entre os chapéus verdes e trajes bordados da indumentária germânica e as bombachas e lenços gaúchos marcou a cerimônia.
“A cultura alemã está inserida dentro do folclore gaúcho”, disse a professora de dança Aline Metz, 49. Ela e sua turma prepararam uma apresentação de danças tradicionais alemãs para as festividades, estreando o figurino novo que seria lançado na São Leopoldo Fest, evento cultural e artístico que movimenta o município em julho.
“A cidade hoje não está pronta para uma festa”, declarou Aline. Por isso, ela prefere se referir ao evento como uma demonstração de solidariedade.
“Sempre uso uma hashtag, #culturaalemãnaveia. Acredito que, independentemente de tudo, está no nosso sangue fazer parte disso”, diz Aline Metz. Para ela, tradições artísticas gastronômicas dos imigrantes se adaptam ao tempo e à modernidade.
“Essa cultura vai permanecer por muitos anos, as pessoas vão participar e vão interagir, porque todo mundo quer ir a um baile. Principalmente se houver cuca e linguiça”, afirmou.
Além dessas duas opções gastronômicas, as bancas de alimentação do evento contaram com outras comidas típicas, como apfelstrudel (torta de maçã), torresmo, salames e queijos. A programação teve ainda feira de artesanato, apresentação de banda típica, concurso de chope por metro e jogos germânicos.
Enquanto os cavaleiros se deslocavam pelas ruas, fiéis lotaram a centenária Igreja do Relógio, de fé luterana, assim como a dos primeiros imigrantes, para um culto temático.
“Os nossos antepassados fugiram de dores, de fome, de sofrimentos. Buscaram alternativas, sonhavam com o novo, e de uma situação de periferia passaram a ser protagonistas da sua própria organização, da sua vida”, disse a pastora Sílvia Beatrice Genz, presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil.
Para Andressa Prass, 23, rainha da corte da São Leopoldo Fest, a data continua como uma comemoração, “mas com outra perspectiva”.
“Hoje está sendo um marco muito importante para a nossa história. Não estamos comemorando apenas o 25 de julho, mas tudo o que nós construímos até hoje”, disse. “Isso inclui esse episódio das enchentes que nós passamos juntos, unidos, e agora estamos nos levantando.”
“O Brasil é um exemplo para o mundo”, afirmou Marc Bogdahn, cônsul-geral da Alemanha no Rio Grande do Sul. “Povos virem de origens tão diferentes, italianos, portugueses, espanhóis, alemães, japoneses, logicamente muitos africanos, e conseguirem formar uma nação só, a nação brasileira que é muito diversa e bem unida, isso é uma coisa admirável.”