O coronel aposentado russo Andrei Demurenko, 68, é uma espécie rara. Formado na antiga União Soviética, foi o único oficial do país a se graduar pela escola de comando do Exército Estados Unidos, serviu na força de paz das Nações Unidas na Guerra da Bósnia (1992-1995) e, por tudo isso, foi preterido na hora de virar general.
Após uma bem-sucedida carreira civil no serviço público, decidiu ser voluntário quando os mísseis de Vladimir Putin começaram a cair sobre a Ucrânia, há pouco mais de dois anos. Conseguiu um posto de comando e acabou ferido com seriedade na cabeça, interrompendo sua volta à ativa.
“Eu quero voltar à Ucrânia”, diz Demurenko, para desespero de sua mulher, a farmacêutica Dina, 66. Eles receberam a Folha em sua agradável casa nos subúrbios de Moscou no domingo (10). Entre uma farta refeição georgiana e goles de um destilado insondável russo, repassaram a história do coronel.
A decisão de ir à Ucrânia fermentava na cabeça de Demurenko, um homem alto e esguio, desde 2014, quando o governo pró-Rússia de Kiev foi derrubado. Para ele, ficara claro que seu país deveria reagir ao que ele vê, assim como o presidente no qual votará no próximo domingo (17), como uma armação do Ocidente para minar Moscou.
Ele não está sozinho. Este é o discurso de Putin, esposado por cerca de 2/3 da população, segundo o centro independente de pesquisa Levada. “Quando vi as notícias do início do conflito, comecei a falar com amigos sobre como poderia ir servir”, disse ele, que considera guerras sempre terríveis.
O processo demorou. Após idas e vindas, a Demurenko foi ofertado um cargo de comando em um batalhão de voluntários na região de Donetsk, uma das quatro áreas que o Kremlin anexou ilegalmente em 2022, mas que ainda não estão totalmente sob controle russo.
“Eu conhecia alguns dos voluntários, sérvios muito durões, e curiosamente meu conhecimento de inglês foi visto como algo positivo”, afirmou, não escondendo a ironia. O motivo é simples: em 1996, quando voltou à Rússia da antiga Iugoslávia, penou por dois anos sem uma promoção porque sua proximidade com os EUA era vista como tóxica.
Segundo ele, o problema era o filtro do FSB, o onipresente serviço secreto russo, sucessor central da KGB soviética. Antes do ano e meio na Iugoslávia, Demurenko havia frequentado a prestigiosa a Escola de Comando e Estado-Maior de Fort Leavenworth, no estado de Kansas.
Academia de elite do Exército americano, a instituição nunca havia recebido um russo para a totalidade de seu curso, que no caso de Demurenko durou de 1992 a 1994. “Depois fui punido por algo que me mandaram fazer!”, conta.
Ao se dar conta de que sua carreira estava em um beco sem saída, foi trabalhar no setor de estaleiros, primeiro em São Petersburgo e, depois, na região do rio Volga. De lá, arrumou um confortável e bem pago emprego como supervisor geral na RZD, a gigante ferroviária russa.
O chamado da guerra, contudo, o tirou da cadeira, enfim, em fevereiro de 2023. Aos 66 anos, seria chefe do Estado-Maior, o número 2 da Brigada Lobo, uma unidade que começou com 600 homens e foi engordando aos poucos, chegando ao tamanho padrão de 1.800 pessoas, inclusive jovens mobilizados no fim de 2022.
Demurenko não gostou do que viu. “As condições eram muito difíceis, pois a umidade e a lama dominam tudo. Com a vigilância dos pequenos drones, é impossível cavar trincheiras regulares, e cada homem precisa se enfiar em um buraco individual na terra para não ser visto. Todo mundo tem bronquite”, conta.
Os mobilizados, relata, não tinham treinamento suficiente. “Passaram quatro meses no Exército e deram talvez dez tiros de metralhadora”, disse. Era a pressa de Putin falando alto, após a soberba da operação inicial para tomar Kiev ser recompensada com uma retirada às pressas por falta de pessoal e logística.
As contramedidas eletrônicas para os aviões-robôs eram eficazes, mas o problema é que não havia energia suficiente à disposição. “Tínhamos de usar baterias portáteis”, diz. Ele afirma que “ambos os lados improvisaram bastante na guerra dos drones“, com o emprego paulatino de modelos que lançavam munição, hoje disseminados.
Demurenko lista três erros da Rússia na invasão. Primeiro, a falha em tomar Kiev nos primeiro dias da guerra; depois, a eficiência dos ucranianos em ação; por fim, o uso intensivo de drones de vigilância, algo que a Rússia só teria à mão depois. “Os nossos modelos eram obsoletos”, afirma.
O tempo, avalia o coronel, falou em favor de Moscou. “Temos mais e melhor artilharia e mostramos condições de romper cercos, como em Bakhmut e ao longo de 2023. Até pelo que ouvimos de prisioneiros de guerra, isso derrubou o moral do outro lado”, afirma.
Foi naquela cidade de Donetsk que sua unidade se viu sob fogo pesado, ao auxiliar as forças do grupo mercenário Wagner, que tentou por meses tomá-la. “Tínhamos ordens para apoiar, impedindo ataques nos flancos pelos ucranianos”, afirmou.
Sobre a organização que viria a tentar dar um golpe contra a cúpula militar russa em junho passado, e cujo líder Ievguêni Prigojin morreu na explosão de seu avião logo depois, Demurenko não tem boas palavras. “São criminosos que comandam criminosos”, disse, concedendo que muitos deles são guerreiros ferozes e heroicos.
Demurenko tem uma visão menos crítica de um criminoso de guerra condenado na Corte de Haia por ações na Bósnia, o ex-general sérvio-bósnio Ratko Mladic, hoje com 81 anos e em prisão perpétua. “Por algum motivo, ele gostou de mim em Sarajevo. Quando foi preso, começou a mandar cartas”, conta, mostrando uma das missivas de 2016, anotada atrás de uma foto do militar.
Ao mesmo tempo que entende a Ucrânia como uma linha de frente de uma guerra maior entre a Rússia e o Ocidente, só tem boas memórias de seu tempo nos EUA. Prova isso ao ligar para o também coronel aposentado David Glance, na Pensilvânia, e passar o telefone à reportagem.
“Demurenko é um grande companheiro, pena que hoje seja tão difícil para nós nos falarmos abertamente”, disse o militar americano. “Ele está bem de saúde?”, questionou.
Relativamente. O motivo de ele estar em casa com Dina é a noite do dia 16 de março de 2023, um mês e meio após sua ida para a Ucrânia. O comandante da brigada estava fora, e ele assumiu as operações militares na frente, a 700 metros de posições ucranianas.
“Eu e mais sete soldados fomos fazer um reconhecimento, mas os inimigos nos viram. Dispararam morteiros poloneses de 60 mm, terríveis, porque você não os ouve chegar como a artilharia normal. Eu senti um impacto na cabeça e fui jogado contra uma árvore, apagando por uns momentos”, contou.
Seus subordinados o levaram do jeito que puderam, meio se arrastando, até um posto de controle russo. “Eu não queria ir para um hospital do Wagner, que era melhor que o nosso e mais perto. Cheguei a Altchevsk (Lugansk) às 2h e, às 6h, já estava numa conferência”, afirmou.
O sangue que lhe corria pelo lado direito do rosto, os olhos injetados e os sintomas de concussão aguda fizeram o encontro ser interrompido e ele, levado de volta à Rússia. “Como não quis ser declarado incapacitado, não tive direito aos 2 milhões de rublos (R$ 110 mil) de compensação”, diz.
Após cirurgias e tratamentos medicamentosos, Demurenko lida com efeitos colaterais. Treme as duas mãos, tem dores de cabeça, confusão mental e olhos ainda avermelhados. Pior, para um russo, não pode tocar no álcool que oferece com generosidade.
Insiste em que pode ficar em forma para voltar. Diz que seus filhos, o empresário Kirill, 44, e a roteirista de TV Katia, 40, estão crescidos: a filha já lhe deu dois netos, de 10 e 14 anos. Dina serve, não sem fazer piada sobre o tamanho do pedaço, uma torta Kiev à mesa: “Por quê?”, pergunta retoricamente ao marido.
“Porque eu preciso acabar a missão da minha vida”, responde Demurenko, dando a deixa: “Eu gostaria até de ser um administrador civil, se fosse convidado”. Na sua fala, há crença de que sim, os avanços recentes mostram que Putin está ganhando. Crê que a Rússia aprendeu com os erros. “Vamos vencer”, diz, estabelecendo os 20% já em mãos do Kremlin como o “mínimo aceitável”.
E a Terceira Guerra Mundial? “Ninguém que um conflito entre Rússia e Otan. Se isso ocorrer, terei de recorrer às escadas”, diz o militar, apontando para a sauna que mantém no subsolo de sua casa. Até lá, prefere ver uso para o uniforme completo que guarda em uma caixa junto à escadaria.