Depois de uma das eleições mais memoráveis da história recente da Argentina, Javier Milei subirá à tribuna do Congresso Nacional, receberá a faixa presidencial de Alberto Fernández e se tornará o 12º presidente eleito do país neste domingo (10), marcando seus 40 anos de democracia ininterruptos.
A nação tem motivos para comemorar. Mesmo passando por graves crises econômicas e profundos dilemas institucionais nesse período, não sucumbiu a novos golpes ou regimes autocráticos desde a ditadura de 1976 a 1983, uma das mais sangrentas da América Latina apesar da curta duração.
Isso porque houve um enfraquecimento dos militares enquanto força política e um reforço do sistema de partidos. Especialistas também citam o papel de Raúl Alfonsín, primeiro presidente eleito tido como “pai da democracia”, e uma cultura de memória construída pelos governos Kirchner, embora haja críticas sobre como isso foi feito.
Agora, porém, eles coincidem em afirmar que o regime democrático passa por um momento tenso na Argentina, como em grande parte da região, por uma sensação de que o sistema não conseguiu resolver os problemas básicos de emprego e renda. A ascensão de um líder que ganhou por seu discurso antipolítica ou “anticasta” é o sinal mais visível disso.
A última pesquisa Latinobarómetro aponta que, nos últimos três anos, aumentaram as duas pontas: tanto os argentinos que dizem preferir a democracia (de 55% para 62%) quanto os que acham que em algumas circunstâncias um governo autoritário pode ser melhor (de 13% para 18%).
“Isso surpreende na Argentina”, diz o relatório sobre o último dado, pontuando que no país a insatisfação muitas vezes se dá com um aumento da abstenção ou dos votos nulos e brancos nas urnas. Ainda assim, o país vizinho só perde para o Chile em termos de defesa democrática “e está muito melhor equipado que outros para resistir” a pressões, conclui.
“Em 2019, quando houve golpes na Bolívia, no Peru e se tacava fogo no Congresso da Guatemala, a Argentina vivia uma situação socioeconômica ainda mais difícil, mas houve uma transição [de Mauricio Macri para Fernández] sem nenhum tipo de problema”, lembra Matías Bianchi, diretor da Asuntos del Sur, organização que pesquisa a democracia latino-americana.
A democracia reinou mesmo após a população pedir “que se vão todos” em 2001, numa onda de protestos raivosos que fez o presidente Fernando de la Rúa fugir da Casa Rosada de helicóptero. O grito foi ressuscitado por Milei na campanha.
“Uma cultura política democrática muito forte se consolidou na década de 1980, com movimentos sociais, organizações estudantis, movimentos operários. Os partidos, de esquerda e de direita, conseguiram centralizar a discussão política”, analisa o cientista político.
O fracasso da Guerra das Malvinas contra a Inglaterra e os julgamentos dos líderes das Forças Armadas logo após o fim da ditadura, em 1985, reconhecido internacionalmente, tiveram um grande peso na desidratação dos militares —que não conseguiram impor suas condições na redemocratização, ao contrário do que ocorreu com a Lei de Anistia no Brasil.
Uma comissão civil foi rapidamente formada para investigar e documentar os crimes contra os direitos humanos no relatório “Nunca Mais”, e os comandantes Jorge Videla, Emilio Massera e Roberto Viola foram condenados junto a outros ditadores por homicídios, sequestros, torturas e desaparecimentos forçados.
Esses são considerados méritos indiscutíveis do então presidente Afonsín, a quem Milei chamou de “fracassado hiperinflacionário” durante a campanha, enquanto contava ter comprado um boneco de boxe com seu rosto para dar socos. Em um debate, o então candidato também disse que “não foram 30 mil” mortos e desaparecidos, número simbólico no país.
“Houve algumas tentativas de golpe logo depois, mas foram abafadas rapidamente. Tanto no governo Afonsín quanto no de Carlos Menem [nas décadas de 1980 e 1990], as Forças foram muito controladas”, diz Cristian Altavilla, professor de direito constitucional e autor do livro “Democracia, Estado de Direito e Direitos Humanos na América Latina”.
Nos anos 2000, Néstor Kirchner apertou ainda mais o orçamento militar e chegou a nomear uma montonera (guerrilheira) como ministra da Defesa. Os governos dele e da esposa Cristina Kirchner tiveram uma forte política de preservar a memória da ditadura, com feriados e monumentos, afirma o pesquisador.
“Mas, apesar de terem dado muita importância ao assunto, eles trataram como questão partidária. Houve uma monopolização da defesa da democracia, quando na verdade diferentes partidos e forças tiveram uma importância. Isso contribuiu para a famosa ‘grieta’ [polarização] na Argentina”, pondera.
O historiador Luciano de Privitellio também tem uma visão crítica sobre a forma como as memórias foram criadas nos últimos 40 anos, sempre sobre a ideia de bons versus maus. “Foi importante como símbolo inicialmente, mas logo se isentou a sociedade de pensar sobre si mesma e sua responsabilidade. Não foram nove caras maus que criaram a ditadura”, diz.
Ele vê uma difícil relação entre a sociedade e a classe política hoje em dia. “Mantemos o problema da polarização brutal. Temos uma fratura social que produz duas ou três argentinas distintas, com visões muito diferentes, que fazem ser muito difícil governar o país”, afirma o professor titular da Universidade de Buenos Aires, coautor do livro “Histórica das Eleições na Argentina”.
Apesar de Milei ter acendido um alerta vermelho ao tratar a democracia como sistema ineficiente e a justiça social como “aberração política”, seu discurso mais radical não vem do lado militar, e sim econômico. Circulava com a Constituição na mão, e não costuma fazer críticas aos outros Poderes. Pelo contrário: antes de tomar posse, já teve que começar a negociar.