A imagem de soldados empunhando armas das quais saem flores, em vez de tiros, está em exposição na Casa da História Europeia, em Bruxelas. A foto, de autoria de Eduardo Gageiro, é a contribuição solitária de Portugal ao museu dedicado à memória do continente. A imagem é um símbolo da Revolução dos Cravos, que faz 50 anos na quinta-feira (25) e redefiniu o país ao encerrar 48 anos de ditadura.
O 25 de Abril foi um caso raro de golpe militar que instalou uma democracia em vez de uma ditadura, como observou Samuel Huntington em seu clássico “A Terceira Onda”. Logo no início do livro, o cientista político americano lembra que a canção “Grândola, Vila Morena”, transmitida pelo rádio, foi a senha para o levante militar que iniciou não apenas uma revolução num país, mas um vagalhão de movimentos contra autoritarismos mundo afora. Construir uma democracia, no entanto, é um processo diligente que vai além de uma imagem icônica e um tema musical.
“A transição portuguesa para a democracia foi turbulenta”, diz Marina Costa Lobo, diretora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, referência no país na área de estudos sobre política. Logo depois da Revolução dos Cravos veio o “verão quente”, com greves, conflitos trabalhistas dentro das empresas e ocupação de casas desabitadas. “A construção democrática se deu em várias etapas, e a primeira delas foi a Constituinte de 1975, muito importante ao mostrar que, num movimento liderado pela esquerda, a força da extrema esquerda era bastante menor do que se pensava.”
As eleições para a Constituinte foram em 25 de abril de 1975, exatamente um ano depois da Revolução dos Cravos. Duas facções políticas disputavam espaço: o tradicional Partido Comunista Português, liderado por Álvaro Cunhal, e o Partido Socialista, recém-fundado por Mário Soares. O Partido Comunista era alinhado com Moscou e tinha conexões com a então Alemanha Oriental. O Partido Socialista, formado por políticos de esquerda exilados pelo regime do ditador António de Oliveira Salazar, espelhava-se na social-democracia francesa, alemã e sueca.
“O Partido Socialista foi construído, de certa forma, em oposição ao que eram os valores do antigo Partido Comunista”, diz Costa Lobo. “Os comunistas eram anticapitalistas, contra a então Comunidade Econômica Europeia e contra a Otan. O Partido Socialista era apologista do capitalismo moderado pelo Estado social, além de europeísta e favorável à Otan.”
A hegemonia dos socialistas dentro da esquerda se consolidou num terceiro 25 de abril, o de 1976, quando a sigla venceu as primeiras eleições do novo regime democrático. “O Partido Socialista tentou governar em minoria primeiro, e depois formou governo com o CDS (Centro Democrático Social), um partido de direita. O PS sempre tentou fazer pontes à sua direita porque havia essa clivagem de regime com o Partido Comunista, que só seria quebrada em 2015 com a ‘geringonça’”, afirma Costa Lobo. Ela se refere ao governo recente liderado por António Costa —em que finalmente, depois de décadas de rivalidade, os socialistas seriam apoiados pelos comunistas.
Paralelamente aos três 25 de Abril nos quais se desenharam as instituições portuguesas havia um desafio: afastar os militares da política. Foi um Exército desgastado por guerras nas “províncias ultramarinas” –Portugal era um dos poucos países a ainda manter um império colonial, na África e na Ásia– que tomou a iniciativa de derrubar o regime ao depor Marcelo Caetano, sucessor do ditador António Salazar. “Por causa disso, foi preciso dar um lugar muito proeminente à hierarquia militar na Constituição de 1976”, afirma Costa Lobo.
A insatisfação com as guerras coloniais era o cimento que unia um Exército formado por militares de esquerda e de direita. A causa comum, no entanto, não apagou as divisões internas. Chegou a ocorrer uma tentativa de golpe dentro do golpe em novembro de 1974, debelado por militares moderados, o que evidenciou a necessidade de definir claramente o papel das Forças Armadas. “Eu diria que a revisão constitucional de 1982 foi decisiva para a consolidação do sistema democrático”, diz Costa Lobo. “Nessa revisão os militares foram completamente excluídos das instituições.”
O predomínio dos partidos do centro democrático, a partir da vitória dos socialistas sobre os comunistas, e a retirada dos militares da política foram, assim, fundamentais para a consolidação da democracia portuguesa. Num evento sobre o 25 de abril na sexta-feira (19), o presidente Marcelo Rebelo de Sousa, da sigla de centro-direita PSD (Partido Social Democrata), exaltou a alternância de poder no país: “Nas eleições seguintes à vitória inicial do Partido Socialista o poder pendeu para a direita. Isso mostra que a revolução que restabeleceu a democracia não tem partido, é uma vitória de todo o espectro político”.
Na próxima quinta-feira milhares de portugueses descerão a avenida da Liberdade em direção ao largo do Rossio, em Lisboa, na tradicional caminhada comemorativa do 25 de abril. Jovens e velhos, de esquerda e de direita, portarão cravos e cantarão os versos de “Grândola Vila Morena” –imagem e trilha da festa que, mesmo em tempos de polarização, une a maioria dos portugueses.