A psicóloga Caroline Azevedo faz parte do contingente de pelo menos 400 mil brasileiros que decidiram viver em Portugal, de acordo com números oficiais do ano passado. Como muitos deles, ficou surpresa ao receber, na semana passada, um email da Aima (Agência para Integração, Migrações e Asilo).
Na mensagem, o órgão cobrava o pagamento de uma taxa de € 56,80 (cerca de R$ 315) num prazo de dez dias. Caso contrário, o processo de regularização de seus papéis para residir no país poderia ser interrompido. “Foi uma surpresa, cheguei a duvidar que fosse um email real”, diz Azevedo.
A cobrança já existia desde o ano passado. A novidade é que agora é feita no início do processo, não mais no final –e sem a garantia de que o imigrante tenha sua documentação aprovada. O objetivo da mudança seria agilizar os procedimentos.
Brasileiros e cidadãos da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) ainda pagam um valor relativamente baixo se comparados a imigrantes de outros países. Para os não lusófonos, a taxa é de € 397,96 (aproximadamente R$ 2.200), o equivalente a meio salário mínimo português.
A quantia faz diferença para o marroquino Omar Ochman, que junta dinheiro como entregador de comida por aplicativo para homologar seu registro profissional —ele estudou economia em Casablanca, sua cidade natal. Ochman foi um dos milhares de imigrantes que fizeram fila na sede da Aima na quarta-feira (15). Ele se queixou de problemas técnicos do site da agência. “O link que me mandaram para fazer o pagamento estava expirado.”
Portugal é um dos poucos países europeus em que é possível um estrangeiro entrar sem documentos e se legalizar depois. O processo se chama “Manifestação de Interesse”. O imigrante chega —ou como turista ou vindo de outro país da União Europeia— e procura um emprego. Caso consiga, mesmo que seja um trabalho temporário, faz um registro na internet manifestando o desejo de continuar no país. O registro é homologado numa entrevista posterior, mas o pedido protocolado já é um documento válido.
A Aima foi criada em outubro do ano passado como um avanço em relação ao sistema anterior. “Antes a imigração era gerida pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), que juntava a função administrativa e a policial, pois cuidava também do controle de fronteiras”, explica a cientista política Ana Paula Costa, vice-presidente da Casa do Brasil, associação sem fins lucrativos destinada a atender imigrantes brasileiros. “Era como se a imigração fosse um risco ou um crime.”
O novo órgão herdou do SEF, porém, uma enorme fila de solicitantes. Estima-se que haja cerca de 400 mil pessoas à espera na lista da Manifestação de Interesse. “Este procedimento seria de exceção, por seu caráter provisório, mas acabou virando regra em Portugal”, afirma a advogada brasileira Erica Acosta, uma das profissionais mais procuradas por seus compatriotas.
O caso de Caroline Azevedo, do início desta reportagem, exemplifica o périplo a que a maioria dos imigrantes se submete para se regularizar. Ela era professora universitária em Feira de Santana (BA). Decidiu emigrar para Portugal no início de 2023 junto com o marido, Vinícius Oliveira, e a filha de oito anos do casal. Oliveira é historiador e faz mestrado na Universidade do Porto. Havia também razões de saúde. Mãe e filha são portadoras de uma doença degenerativa que causa declínio progressivo na visão. “Soubemos que Portugal é referência nessa área”, diz Azevedo.
Para conseguir emprego, ela deu entrada na Manifestação de Interesse. Não conseguiu trabalho como psicóloga, pois a ordem local só aceita quem tem mestrado na área, e o dela é em saúde coletiva —embora dê aulas em faculdade de psicologia. O protocolo da Manifestação de Interesse a ajudou a arranjar emprego na área pedagógica de uma escola. Para homologar o processo, porém, Azevedo teria de fazer uma entrevista. Em um ano e meio, não foi chamada.
Quando o marido regularizou o visto de estudante, abriu-se a possibilidade para que Azevedo e a filha conseguissem os papéis pela rubrica “Reunião Familiar”, mas ele tampouco foi chamado para entrevista devido à fila. A surpresa de Azevedo com o email que recebeu da Aima é que a mensagem ainda fazia referência ao processo anterior. “Isso mostra que, entre outras coisas, há falha de comunicação interna na agência”, diz a brasileira.
Quando a Manifestação de Interesse foi adotada, a estimativa oficial de conclusão do processo era de 90 dias. Hoje, segundo a advogada Acosta, pode chegar a dois ou três anos. A demora já tornou a agência alvo de cerca de 7.600 processos. Segundo estimativa do jornal lisboeta Expresso, 52 imigrantes entram na Justiça diariamente contra a Aima.
À espera da regularização há pessoas em situação precária. Em torno da igreja de Nossa Senhora dos Anjos, perto do centro de Lisboa, há um acampamento com cerca de 120 imigrantes da Guiné, de Gâmbia, do Senegal e de outros países africanos. Vivendo em barracas, eles têm dificuldades básicas em seus processos de legalização, como se cadastrar no site da Aima.
“A agência tenta automatizar seus processos, o que é positivo, mas parece desconhecer que grande parte de seu público não tem a alfabetização digital básica”, diz a advogada Acosta.
Procurada pela Folha, a Aima respondeu, por email, que está ciente das “enormes dificuldades experimentadas pelos utentes [usuários] no agendamento pelo Centro de Contacto”. O órgão afirma que pretende, até o primeiro semestre do ano que vem, digitalizar todo o processo. Segundo a nota enviada, a exigência de pagamento antes da entrevista visa dispensar os pagamentos no balcão, o que simplificaria o atendimento.