O fado “Abandono”, interpretado por Amália Rodrigues, a maior cantora do gênero, começa com os seguintes versos: “Por teu livre pensamento/ Foram-te longe encerrar/ Tão longe que meu lamento/ Não te consegue alcançar”. E termina: “Levaram-te a meio da noite/ A treva tudo cobria/ Foi de noite, foi de noite/ E nunca mais se fez dia.”
Letra e música ecoaram na voz da cantora Sofia Lisboa durante a inauguração, neste sábado (27), do Museu Nacional Resistência e Liberdade, em Peniche, cidade litorânea portuguesa. O museu funciona no lugar onde se situava a maior prisão política da ditadura salazarista. Hoje abriga uma coleção de memórias da resistência ao autoritarismo. Composto em 1960, “Abandono” se tornou hino dessa resistência —recebendo o apelido de “Fado do Peniche”.
Nos festejos dos 50 anos da Revolução dos Cravos, os portugueses não se limitam a celebrar a democracia. Livros, peças e museus se dedicam também a lembrar como era difícil viver sob uma ditadura. A ideia é preservar a memória não apenas de atos de heroísmo, mas também do cotidiano opressivo enfrentado pelos cidadãos no dia a dia.
“Um dos nossos objetivos principais é atingir as gerações mais jovens, que não têm ideia do que é viver num regime de repressão”, diz Aida Rechena, diretora do museu. “Não vamos mostrar apenas os horrores da ditadura, mas também contar as histórias cotidianas dos que resistiram.”
Depois de uma longa e ambiciosa reforma, o riquíssimo acervo do museu foi distribuído em salas de exposição e painéis interativos, que permitem a navegação em fatos da época e em histórias pessoais. Uma das sagas mais extraordinárias é a do casal Herculana e Luís Alves de Carvalho. Eles eram pais de Guilherme de Carvalho, militante do Partido Comunista Português.
Em uma de suas detenções, Guilherme foi levado ao Campo de Concentração do Tarrafal, uma espécie de presídio de segurança máxima da época. Localizava-se na ilha de São Vicente, em Cabo Verde, então uma colônia portuguesa na costa africana. O lugar era apelidado de “Campo da Morte Lenta”, dadas as condições insalubres, que facilitavam a propagação de doenças. Longe dos olhos dos portugueses, os dissidentes políticos –e, a partir dos anos 1960, os prisioneiros da guerra colonial– sofriam também torturas e maus-tratos.
Em 1949, Herculana e Luís foram autorizados a fazer uma visita ao filho Guilherme no Tarrafal. Lá, tiraram fotografias de vários presos e também dos túmulos dos detentos que haviam morrido em decorrência de doenças ou maus-tratos. De volta a Portugal, entregaram cerca de 200 fotografias a famílias de dissidentes políticos.
Poucas ditaduras interferiram tanto na vida cotidiana dos cidadãos comuns quanto a portuguesa. Algumas dessas interferências estão listadas no livro “Era Proibido”, do jornalista António Costa Santos, cuja versão atualizada chegou às livrarias na esteira dos festejos de 25 de abril.
A obra mostra como um regime retrógrado institucionalizava, na forma de leis, comportamentos autoritários, xenófobos ou machistas. As mulheres precisavam de autorização dos maridos para viajar ao exterior ou para trabalhar. Homens não podiam ser punidos por violar a correspondência de suas esposas.
Não havia divórcio, e era comum que mulheres que quisessem se separar acabassem internadas em hospícios. Médicos amigos dos maridos forneciam laudos de doença mental, como mostrou uma exposição recente dedicada ao tema no Museu do Aljube, em Lisboa —outra instituição dedicada a relembrar os horrores da ditadura, também situada num prédio que serviu de prisão.
O reacionarismo salazarista tinha momentos de humor involuntário. Ficou famosa a portaria 69.035 da Câmara Municipal de Lisboa, de 1953. Em seu artigo 48 ela estabelecia multas para quem atentasse contra a moral e os bons costumes: “Mão na mão: 2$50 Escudos; Mão naquilo: 15$00; Aquilo na mão: 30$00; Aquilo naquilo: 50$00”. Quem fosse apanhado “com a língua naquilo”, além dos 150$00 de multa, poderia acabar preso. “Foi um tempo caricato, mas sem graça”, afirma Costa Santos em seu livro.
Outras leis esdrúxulas proibiam a Coca-Cola e o uso de isqueiros na rua, com a justificativa de proteger as indústrias nacionais do vinho e dos fósforos. Inspirado nelas, o grupo teatral Palmilha Dentada criou a peça “O 25 de Abril Nunca Aconteceu”, que está com ingressos esgotados na cidade do Porto.
No espetáculo, uma distopia que imagina Portugal sem a Revolução do Cravos, Cristiano Ronaldo ainda joga no Benfica, pois não consegue autorização para sair do país. Uma fã da cantora Amy Winehouse sonha em assistir a um show dela –uma referência ao fato de que as notícias demoravam a chegar ao país devido à censura. Winehouse morreu em 2011.
O líder do Partido Comunista Português, Álvaro Cunhal, inimigo número um do regime, foi transferido para o presídio do Peniche em 1956. Descobriu-se muito mais tarde que o fado “Abandono” fora escrito em sua homenagem.
“Amália Rodrigues sempre soube disso, embora nunca tenha admitido”, diz o escritor e jornalista Miguel Carvalho, autor do livro “Amália, Ditadura e Revolução”, obra de referência para entender o autoritarismo português.
O salazarismo não teve coragem para censurar Amália, mas proibiu que sua música tocasse no rádio — “o que na época equivalia a não existir”, diz Nuno Estevens, músico da banda de Sofia Lisboa. Um ano depois da composição do “Fado do Peniche”, Álvaro Cunhal escapou da prisão junto com outros presos.
A fuga espetacular repercutiu na imprensa internacional e humilhou o salazarismo. Anos mais tarde, no pós-25 de abril, Cunhal tornou-se líder de um partido finalmente legalizado, que competia por votos na democracia nascente.