Uma publicação no Instagram do Afrolink, um site português de ação afirmativa, provocou a suspensão de um programa de pós-graduação numa universidade lisboeta e repercutiu Europa afora. O conteúdo criticava o curso “Pós-Graduação em Racismo e Xenofobia”, oferecido pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa em parceria com o Observatório do Racismo e Xenofobia, uma entidade governamental. A postagem era ilustrada com os retratos dos professores do programa —todos brancos.
“As reações foram compreensivelmente indignadas, e a universidade e o observatório retiraram a página do curso no mesmo dia”, diz Paula Cardoso, fundadora do Afrolink. Nascida em Moçambique e com cidadania portuguesa, ela diz ter examinado detalhadamente o programa do curso e constatado o que chama de absurdos, além da falta de diversidade no corpo docente. “Um dos módulos tinha o título: ‘Mas o racismo existe mesmo?’. Ora, para quem sofre isso na pele todos os dias a pergunta é no mínimo insultuosa.“
Procurados pela Folha, o Observatório do Racismo e Xenofobia e a Universidade Nova não responderam até a publicação desta reportagem.
Margarida Lima Rego, professora da Nova, disse à agência de notícias Lusa: “Entre o momento da aprovação do curso e o da sua operacionalização ocorreram diversas alterações. A principal foi a indisponibilidade de alguns formadores em lecionarem na pós-graduação. Isso motivou ajustes no programa, que acabou por não refletir os princípios da diversidade e inclusão.”
O episódio —e a própria criação do Observatório do Racismo e Xenofobia— ilustra a relação dos portugueses com o tema, que é um tabu no país. Cardoso afirma que a expressão “racismo estrutural” apareceu pela primeira vez num documento oficial português em 2021, quando o governo do socialista António Costa criou o Plano de Combate ao Racismo e à Discriminação. A criação do Observatório foi uma recomendação do Plano; ele foi instalado em 2023 na forma de um projeto acadêmico, em parceria com a Faculdade de Direito da Nova.
“Foi um projeto que nasceu torto”, diz a portuguesa Myriam Taylor, ativista na área de diversidade e direitos humanos. “As posições de comando sempre foram ocupadas por brancos, como se a palavra observatório significasse pessoas brancas observando o racismo. Na universidade ninguém achou estranho, porque em Portugal foi normalizado o fato de que não existem pessoas racializadas em espaços de poder, e a universidade é um espaço de poder.”
Para Taylor, esse comportamento em relação ao racismo tem origens históricas. A ditadura salazarista, que oprimiu Portugal entre 1933 e 1974, propagou a ideia de que não havia racismo no país e que a colonização portuguesa havia sido benigna.
O ditador António de Oliveira Salazar se inspirou no conceito de lusotropicalismo criado por Gilberto Freyre. Para o sociólogo brasileiro, os portugueses estavam acostumados à diversidade pelo fato de a península ibérica ter sido ocupada por inúmeros povos. Assim, não seriam racistas, em comparação com ingleses e americanos. Freyre chegou a viajar a Portugal e a vários países africanos a convite de Salazar.
Paula Cardoso, do Afrolink, retoma ainda uma conversa que diz ter tido com Ana Catarina Mendes, ministra do governo de António Costa, pouco depois do lançamento do Plano de Combate ao Racismo e à Discriminação. “Ela me perguntou o que era racismo estrutural e ficou surpresa quando eu disse que havia negros que eram discriminados no mercado de trabalho quando colocavam a fotografia no currículo”, diz Cardoso. “A ideia de que não há racismo em Portugal dificulta um debate sobre questões importantes do país e sobre nossa história.”
O site da Faculdade de Direito da Nova tem uma aba específica sobre o tema “diversidade e inclusão”. Lê-se no portal que “a inclusão e a igualdade de gênero são considerações fundamentais na composição de comissões internas, júris, painéis e outros órgãos”.
Ao menos no caso do curso que acabou suspenso essa consideração não foi observada.