A pergunta faz sentido. Até que ponto a fé que o mundo historicamente sentia na democracia está definhando? Um dos grandes especialistas no assunto está pessimista. Ben Ansell, professor na Universidade de Oxford (Reino Unido), diz ser preocupante o fato de os regimes chamados iliberais serem hoje mais numerosos que os plenamente democráticos.
Ansell foi um dos participantes de um podcast recente da BBC. O encontro permitiu uma conclusão curiosa: por mais que as particularidades institucionais façam da democracia um tema complicado, compreendê-la depende de conceitos relativamente simples. Qualquer cidadão está ao alcance deles.
E o fato de não existir unanimidade em torno de certas questões acaba por fazer a discussão ainda mais didática. Democracia é fácil de entender.
Um primeiro exemplo: Ziyanda Stuurman, analista do Grupo Eurasia, acredita que o grande risco está hoje na manipulação de informações pelas redes sociais. Elas falsificam a relação do cidadão com as instituições que os governam, espalham inverdades e machucam a reputação do sistema representativo.
Não é o que pensa Debasish Roy Chowdhury, um dos coautores de um livro sobre a suposta morte da democracia na Índia. Bem mais que as redes sociais, argumenta, o que existe são os interesses de grupos economicamente poderosos que espalham a mentira para favorecer seus interesses.
Uma visão bem diferente vem de Lilliana Mason, cientista política da Universidade Johns Hopkins (EUA). A seu ver, a verdadeira ameaça à democracia vem de partidos e dirigentes que procuram falsamente convencer os cidadãos de que as instituições foram manipuladas e que são incapazes de representar a vontade de uma maioria.
O exemplo mais nítido é Donald Trump, que reitera como um papagaio que as eleições presidenciais de 2020 foram uma fraude e que a violência da invasão do Capitólio somente procurou resolver essa questão.
Em suma, resume Steven Levitsky, professor em Harvard (EUA), assistimos hoje ao desmoronamento de um sistema global em que, a partir dos anos 1980, a democracia se expandiu e era amplamente adotada. Algo historicamente inédito, depois das ditaduras comunistas no Leste Europeu, dos regimes fascistas dos anos 1930 e de um século 19 em que EUA e alguns países europeus eram exceções democráticas.
Existe uma tendência de associar a democracia apenas aos processos eleitorais, o que acaba por fornecer uma faceta parcial da questão, diz Mason. Bem mais que os procedimentos para a escolha de representantes, é crucial o problema do paralelismo.
Por meio dessa palavra, usada em termos metafóricos, os grupos que compõem uma sociedade podem se assegurar que estão sendo tão bem servidos quanto outros grupos pela oferta de políticas públicas. Ou seja, a democracia não discrimina as parcelas sociais que poderão se favorecer. Todos têm direitos semelhantes, e o tamanho das fatias a serem distribuídas depende da representatividade eleitoral dos grupos.
A mesma pesquisadora levanta como pertinente o papel dos tribunais. “O poder existe também para conter abusos e excessos, e é esse o papel do Judiciário.”
Chowdhury aborda outro ângulo que puxa a brasa para sua sardinha. Trata-se do tratamento conveniente das minorias étnicas –que alguns participantes do podcast apontaram como o erro fundamental do primeiro-ministro Narendra Modi, com sua política discriminatória contra os muçulmanos, o que ele nega.
Modi, o indiano que governa “a maior democracia do mundo”, também escorregou entre 2020 e 2022, disse um dos participantes, ao tirar a internet do ar 84 vezes como meio de esvaziar protestos.
A Índia tem eleições em 2024, e sobre ela se deslocam focos internacionais de atenção. O mesmo vale para a África do Sul, que também vai às urnas neste ano. Completam-se 30 anos da chegada de Nelson Mandela à Presidência. Mas o partido Congresso Nacional Africano perdeu quase toda a reputação que juntara como força anti-apartheid.
Uma ex-correspondente local da BBC nota que se esperava que o fim do regime reduzisse as desigualdades e levasse melhoras substanciais à população negra. Isso não aconteceu. E um dos participantes do podcast relata um dos indícios da má segurança: em 1997, era idêntico o número de policiais públicos e seguranças privados. Hoje, os últimos são quatro vezes mais. É a imagem da democracia que está sofrendo.
isso afeta a África como um todo. Neste ano, cerca de 18 países do continente terão eleições. Mas é provável que não se rejeitem os exemplos iliberais da Etiópia, onde as burocracias se limitam a dar boa sobrevida aos dirigentes. Melhor que o Mali ou Burkina Fasso, hoje entregues a ditaduras.