Estados soberanos não raramente projetam as suas políticas externas jurídicas em diferentes frentes de argumentação com a finalidade de atingir seus objetivos.
Se alguns alegam que o plebiscito aplicado pela Venezuela em 3 de dezembro em relação à região de Essequibo é uma medida que visa a acumular vantagens internas num contexto eleitoral complexo, pode-se também analisá-lo no contexto de uma batalha judicial internacional pela soberania sobre um território.
Nesse segundo sentido, o plebiscito pode ser instrumentalizado para justificar e legitimar as teses venezuelanas em relação ao conflito territorial.
A reivindicação da Venezuela sobre a região do Essequibo é antiga e desde os anos 1960 serve de objeto a uma controvérsia com a Guiana e o Reino Unido —antiga potência colonial do território.
Em suma, a fronteira entre Venezuela e Guiana foi determinada por uma arbitragem interestatal de 1899 conduzida por cinco juristas. O laudo, que designou a região de Essequibo como parte do território da Guiana Britânica à época, é atacado pela Venezuela, dentre outros motivos, pela acusação de suposto conluio e corrupção dos árbitros. Ao contestar o laudo, a Venezuela impugna o título jurídico que garante à Guiana a soberania sobre o território de Essequibo.
Após anos de mediação e trocas de acusações, os Acordos de Genebra de 1966 entre as três partes deram poder ao secretário-geral da ONU para mediar a questão. Após uma nova e fracassada tentativa de mediação, António Guterres reconheceu a competência da Corte Internacional de Justiça, a Corte de Haia, para dirimir a questão. Em 2018, a Guiana recorreu à Corte tendo em vista uma declaração de validade do laudo arbitral de 1899.
Em 2020, a Corte da Haia reconheceu a sua própria competência e, neste ano, rechaçou a defesa processual venezuelana de que o Reino Unido precisaria ser parte no processo graças à sua implicação na disputa. Quase que imediatamente após esse revés judicial, Caracas decidiu convocar o plebiscito que consulta a população sobre as posições de política externa do Estado venezuelano em relação a Essequibo –exigindo da população um conhecimento aprofundado da disputa e do direito internacional.
A Guiana tentou impedir o plebiscito perante a Corte Internacional de Justiça com um pedido de decisão cautelar. Contudo, a Corte apenas expressou que a Venezuela “deverá se abster de tomar qualquer medida que possa modificar a situação que prevalece atualmente no território em disputa” controlado pela Guiana.
Seria surpreendente se a Corte de Haia, em sede cautelar, interviesse em consultas democráticas de um Estado. Contudo, a lição do tribunal é especialmente importante para os rumores de uma suposta invasão militar.
Nesse sentido, pode-se questionar: qual é o sentido do plebiscito como ato jurídico internacional? Antes de responder a essa questão, alguns argumentos jurídicos não podem deixar de ser delineados.
Primeiro, nenhum plebiscito autoriza o uso da força nas relações internacionais. Desde 1945, a anexação territorial pelo uso da força é proibida pelo direito internacional, e os Estados possuem o dever de não reconhecer a situação fática.
Segundo, existe uma obrigação a partir da Carta da ONU que os Estados têm o dever de resolver suas controvérsias pacificamente, o que está em sintonia com a tradição latino-americana e também brasileira de política jurídica internacional.
Terceiro, a decisão da Corte, embora não tenha impedido o plebiscito, garantiu que qualquer ato de mudança de status do território (pelo uso da força ou não) se configuraria como uma interferência na decisão judicial final.
Em outras palavras, tanto a manifestação da Corte quanto as demais regras do direito internacional seriam violadas em caso de uso da força por parte da Venezuela em Essequibo.
Se o plebiscito não possui poderes para outorgar o título do território da Guiana à Venezuela, a qual finalidade ele serve? Ignorados os efeitos internos, revela o uso estratégico do princípio da autodeterminação dos povos.
Como enunciado no direito internacional, “todos os povos têm direito à autodeterminação; em virtude desse direito, eles determinam livremente seu status político e buscam livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural”.
Ou seja, por meio do princípio, e sobretudo por meio da política de concessão de cidadania venezuelana aos habitantes de Essequibo, Caracas parece sugerir que os povos da região estariam sob o jugo de uma potência ocupante (a Guiana). Há obviamente problemas nessa tese.
Enquanto a Corte Internacional de Justiça não decide o mérito do caso, ou seja, se o laudo arbitral de 1899 é nulo ou não, a Venezuela aparenta estar interessada em perseguir outras estratégias jurídicas para garantir algum tipo de titularidade à região do Essequibo.
Diante desse contexto, evitar a escalada das tensões e trazer as partes à mesa de negociação parece o caminho mais indicado tanto para o Brasil quanto para outros Estados, direta ou indiretamente envolvidos, para impedir violações ao direito internacional.