A cobertura de dois quartos vem com vista panorâmica da torre Eiffel e de praticamente todos os outros monumentos ao longo do horizonte de Paris. O aluguel, de 600 euros (cerca de R$ 3.200) por mês, é uma pechincha.
Marine Vallery-Radot, 51, a inquilina, disse que chorou quando recebeu uma ligação informando que ela estava entre as 253 famílias de baixa renda escolhidas para ganhar um apartamento na Ilha de Saint-Germain, no ano passado. O novo complexo de habitação pública fica a uma curta caminhada do Museu d’Orsay, da Assembleia Nacional e do túmulo de Napoleão.
“Tivemos uma sorte danada de conseguir este lugar”, afirma Vallery-Radot, mãe solteira que mora ali com seu filho de 12 anos, enquanto olhava pelas janelas do quarto com vista para o Quartier Latin. “Isso é o que vejo quando acordo.”
Moradias populares podem evocar imagens de edifícios cinzentos e sem personalidade localizados nos subúrbios, mas este alojamento foi construído nos antigos escritórios do Ministério da Defesa Francês, em um dos bairros mais chiques de Paris.
Ele é parte de um esforço para manter residentes de baixa e média renda e baixa e pequenos empresários no coração de uma cidade que, de outra forma, seria inacessível para eles —e, por extensão, preservar a alma de uma cidade adorada por pessoas ao redor do mundo.
Entre julho e agosto, quando a capital francesa recebe mais de 15 milhões de visitantes para as Olimpíadas de 2024, ela mostrará uma cidade projetada para abrigar um “mixité sociale”, isto é, residentes de várias camadas sociais, por políticas governamentais.
Cerca de 25% de todos os residentes de Paris hoje vivem em moradias populares, contra 13% no final da década de 1990. A política, promovida com mais força por siglas de esquerda, especialmente o Partido Comunista Francês, visa evitar a segregação econômica observada em metrópoles mundo afora.
“Nossa filosofia é de que quem produz as riquezas da cidade deve ter o direito de viver nela”, afirma Ian Brossat, um senador comunista que atuou por uma década como chefe do equivalente à Secretaria de Habitação da Prefeitura de Paris. Professores, enfermeiros, estudantes universitários, padeiros e açougueiros estão entre os que se beneficiam do programa.
Mas ele admite que tornar essa filosofia uma realidade tem se tornado cada vez mais difícil —hoje, a lista de espera para uma moradia popular em Paris é de mais de seis anos. “Não vou dizer que é fácil e que resolvemos o problema.”
As mesmas forças de mercado que afligem outras “cidades-estrela”, como Londres, São Francisco e Nova York, atuam em Paris. O preço médio de um apartamento de 300 m² no centro da capital francesa hoje é de 1,3 milhão de euros (cerca de R$ 7 milhões), de acordo com a Câmara dos Notários municipal.
A Fundação Abbé Pierre, uma influente organização de caridade, foi enfática em seu relatório anual, publicado em fevereiro. Nele, ela descreve a crise de moradia na França de uma “bomba-relógio social”, e afirma que não só a quantidade de pessoas em situação de rua cresceu, como a de famílias aguardando uma moradia popular foi para 2,4 milhões em 2024, um aumento de 2 milhões em relação a 2017.
Ainda assim, as medidas que Paris tomou para manter os residentes de baixa renda na cidade vão muito além das iniciativas na maioria das outras cidades europeias (ou americanas).
Todas as quintas-feiras, Jacques Baudrier, o conselheiro municipal de Paris —cargo equivalente ao de vereador— responsável pela questão da habitação checa uma lista de propriedades sendo negociadas por vendedores e compradores no mercado privado. Com algumas exceções, a cidade tem o direito legal de ter preferência na compra de um prédio, adquirir a propriedade e convertê-la em habitação pública.
“Estamos sempre lutando”, diz Baudrier, que tem um orçamento anual de 625 milhões de euros (cerca de R$ 3,3 bilhões). A batalha, segundo ele, é contra forças que tornam a compra de imóveis parisienses impossível para todos exceto os mais abastados, incluindo aqueles que adquirem apartamentos para quando estão na cidade e os deixam vazios na maior parte do ano.
Paris também restringiu fortemente os aluguéis de curto prazo, no estilo Airbnb, depois que autoridades perceberam que bairros históricos como o Marais estavam perdendo residentes à medida que investidores compravam imóveis para alugar para turistas.
Ao mesmo tempo, a cidade construiu ou renovou mais de 82 mil apartamentos ao longo das últimas três décadas para famílias com crianças. Os aluguéis variam de 6 a 13 euros (de R$ 32 a R$ 70) por m², dependendo da renda familiar, o que significa que um apartamento de dois quartos com 300 m² pode ser alugado por 600 euros (cerca de R$ 3.250) por mês.
Também construiu 14 mil apartamentos para estudantes nos últimos 25 anos. Aluguéis mensais em um complexo do tipo atualmente em fase final de construção no 13º distrito começam nos 250 euros (R$ 1.300).
A prefeitura tem uma influência direta nos tipos de negócios que se estabelecem e sobrevivem em Paris porque é a proprietária, por meio de suas subsidiárias imobiliárias, de 19% das lojas da cidade.
Nicolas Bonnet-Oulaldj, o conselheiro municipal responsável por esses imóveis, disse que seu escritório está constantemente estudando os bairros para manter um equilíbrio entre lojas de produtos essenciais e limitar o número de filiais de grandes redes, que geralmente podem pagar aluguéis mais altos.
“Não alugamos para o McDonald’s, não alugamos para o Burger King e não alugamos para a Sephora”, afirma. Ele reconhece que, em alguns bairros onde proprietários privados alugaram para cadeias de lojas, a batalha foi claramente perdida.
A cidade é criteriosa na escolha dos estabelecimentos comerciais para os quais aluga seus imóveis. Em uma área que estava saturada de salões de cabeleireiro, a prefeitura alugou espaços para o funcionamento de uma padaria e uma loja de queijos.
Em outros bairros, optou por ajudar oficinas de reparo de bicicletas, em parte para reforçar o incentivo da cidade para reduzir o número de carros. As autoridades não aceitam jamais alugar seus imóveis para donos de casas de massagem sob a alegação de que às vezes elas servem de fachadas para bordéis.
A poucos minutos da praça da Bastilha está uma das beneficiárias dessa política da cidade. Emmanuelle Fayat, uma luthier que restaura e faz a manutenção de violinos para músicos de orquestra, está cercada pelas ferramentas de seu ofício: raspadeiras, plainas e formões organizados de forma ordenada. Ela aluga, por um valor baixo, o espaço de uma das empresas de administração imobiliária municipais.
“Não tenho conhecimento de marketing e nunca me perguntei como ficar rica”, conta Fayat em uma tarde de fevereiro. “Eu só quero fazer meu trabalho. Gosto mais da minha profissão do que do dinheiro.”
A cerca de um quilômetro dali, em um bairro rico em cafés e restaurantes, a Violette & Co, uma livraria feminista e lésbica, é outra beneficiária do programa. Quando a sede anterior do estabelecimento foi comprado por uma companhia de seguros e os proprietários originais se aposentaram, um grupo de mulheres que queria manter o negócio lutou para encontrar um novo lar para ele.
Autoridades da cidade entraram em contato e ofereceram a elas um novo espaço com aluguel abaixo do mercado. “Os bancos se recusaram a nos emprestar dinheiro”, conta Loïse Tachon, co-gerente da loja. “Eles não achavam que seria lucrativo o suficiente.”
Mais ao norte, perto do parque Buttes-Chaumont, a cidade aluga uma loja para a Desirée Fleurs, que se especializa em flores cultivadas na região de Paris. Audrey Venant, uma das donas do negócio, vê o programa como necessário.
“As empresas locais são muito, muito frágeis”, diz ela, cercada por narcisos, ranúnculos, boca-de-leão, todos perfumados por eucalipto. “Vejo muitos comércios falindo.”
Venant e seu marido, um pintor e escultor, moram em um loft de 70 m² que também faz parte do programa de moradias populares da cidade. Seu aluguel mensal, de 1.300 euros (R$ 7.000), está bem abaixo das taxas cobradas no mercado, afirma ela.
O Instituto Nacional de Estatística francês, o Insee, relata que Paris abriga mais de 10 mil enfermeiros, 1.700 padeiros, 470 açougueiros, 945 coletores de lixo e 5.300 zeladores. O incentivo para mais moradias populares e outros programas para tornar a cidade mais acessível coincidiu com a predominância de partidos políticos de esquerda, que chegaram ao poder em 2001 após décadas de governos de direita.
Mas François Rochon, consultor de planejamento urbano, disse que há um consenso funcional entre direita e esquerda no país hoje sobre a necessidade de moradias populares que reflete as ideias de alguns outros países europeus, embora não os Estados Unidos. “Viver em moradias populares não é um estigma”, diz Rochon.
Prova de que há um alinhamento entre esquerda e direita sobre o assunto, Benoist Apparu, ex-ministro da habitação que serviu em um governo conservador, descreve as moradias populares como “absolutamente essenciais”.
“Uma cidade feita só de pobres é um desastre”, diz Apparu, que hoje trabalha para uma empresa imobiliária. “Mas se for feita só de gente rica, não é muito melhor.”