Em 1989, tropas norte-americanas invadiram o Panamá, em episódio que ficou conhecido, numa ironia trágica, como “Operação Causa Justa”, capitaneada pelo então presidente republicano George H.W. Bush. Além de os soldados estrangeiros causarem mais de 600 mortes panamenhas e danos enormes à infraestrutura e à economia do país, a ação encerrou a ditadura do general Manuel Noriega (1983-1989), antes um colaborador da CIA (Agência Central de Inteligência), então convertido em inimigo do governo norte-americano.
Desde então, apesar do trauma social e financeiro, o país foi recuperando sua democracia, que não se sentiu mais ameaçada. Já são seis os presidentes democraticamente eleitos.
Porém, neste domingo, os panamenhos vão às urnas na situação mais excepcional que sua democracia já viveu desde aquele terrível dia 20 de dezembro de 1989.
O Panamá solidificou sua economia em torno da atividade do Canal do Panamá e se transformou num estável país de serviços, com um vínculo muito forte com os EUA. Vinha sendo também uma espécie de oásis de paz numa América Central atormentada pelos problemas contemporâneos da região: violência, narcotráfico e imigração maciça. Infelizmente, nada disso é alheio ao Panamá de hoje.
Além disso, a preocupação com o meio ambiente se transformou, também de maneira inédita, num elemento de peso no pleito, ainda que nenhum dos principais candidatos levante essa bandeira. E o país vem precisando de medidas urgentes.
Nos últimos meses, manifestações juvenis contra a exploração de mineradoras que desalojam povoações indígenas e a falta de água crônica causada pela mudança climática vêm pressionando os mandatários a tomar atitudes numa área antes desprezada pela política tradicional.
Os resultados do descuido são claros: falta água nas casas dos cidadãos e nada menos que o Canal do Panamá vem tendo sua capacidade dramaticamente reduzida. A baixa d’água vem impedindo um fluxo rápido dos navios comerciais, causando enormes prejuízos.
Mas o que chama mais atenção neste pleito e que configura o retrato do desgaste democrático do país hoje é a sonora contradição com que se depara neste domingo eleitoral.
Enquanto a corrupção aparece como a principal preocupação dos panamenhos, segundo recente pesquisa Gallup (57%), o líder das sondagens, mais de dez pontos à frente do segundo colocado, é um político acusado de corrupção e que foi salvo de não poder concorrer pela Justiça local no último minuto: o ex-ministro e ex-chanceler José Raúl Mulino.
Este, por sua vez, ganhou seu lugar na cédula devido ao impedimento de seu padrinho político, o ex-presidente Ricardo Martinelli, de tentar um novo mandato por estar condenado a 10 anos e 8 meses de prisão por lavagem de dinheiro. Desde então, Martinelli coordena a campanha de Mulino baseado em seu refúgio na Embaixada da Nicarágua na Cidade do Panamá.
Se os panamenhos têm a corrupção como maior preocupação, por que seguem apegados à figura de Martinelli, a ponto de votar em seu candidato, quando ambos estão descaradamente vinculados a negócios ilícitos?
Pois a única explicação possível é que Martinelli comandou o país numa época de grande crescimento econômico do país, de 2009 a 2014. O outro lado da moeda é que, no período, foi acusado e condenado por receber propinas da empreiteira brasileira Odebrecht e de espionar opositores, jornalistas e até uma amante por meio da ferramenta Pegasus.
Ou seja, mais uma evidência de que a corrupção é sempre um conceito abstrato enquanto os eleitores estão com bolso cheio.
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