Izat Elamoor descreve a sua experiência com a diversidade sexual e de gênero na região em que mora em uma frase: o mundo precisa saber que existe uma comunidade LGBTQIA+ vibrante e maravilhosa na Palestina.
Elamoor cresceu em Kuseife, uma cidade palestina e muçulmana no deserto do Negev, no sul de Israel. Ele conta que deixou de se sentir sozinho ao conhecer palestinos LGBT+ em outras partes do território, bem como nas regiões ocupadas.
“Não foi fácil crescer sendo queer neste ambiente, mas nunca foi tão ruim quanto a imagem que se tem sobre nós no Ocidente”, diz à Folha. “A relação que eu tenho com a minha família não é muito diferente daquela enfrentada por pessoas LGBT+ em lares conservadores em outras partes do mundo.”
Ele hoje vive nos Estados Unidos, onde obteve doutorado em sociologia pela Universidade de Nova York. É professor no Hendrix College, no Arkansas, e pesquisa o movimento LGBT+ na Palestina e no Oriente Médio.
O pesquisador afirma que Israel frequentemente explora a situação de palestinos LGBT+ a fim de projetar uma imagem positiva no exterior –o movimento LGBT+ chama essa estratégia de “pinkwashing” (lavagem em cor-de-rosa, em tradução literal).
Ele diz que esses esforços se intensificaram desde os ataques terroristas do Hamas em 7 de outubro. Como exemplo, cita uma imagem amplamente compartilhada nas redes sociais que mostra um soldado israelense segurando uma bandeira do arco-íris em meio a prédios destruídos na Faixa de Gaza. “Isso é uma tentativa de redefinir o amor, a moralidade e a humanidade em uma arma em cujo nome palestinos são mortos.”
Palestinos estão sujeitos a regimes jurídicos distintos com base no território onde vivem, o que tem impacto direto sobre os direitos da população LGBT+. Relações entre pessoas do mesmo sexo eram comuns e permitidas na região sob o Império Otomano, mas passaram a ser criminalizadas em 1936, quando a Palestina estava sob ocupação do Reino Unido.
Em Israel, a homossexualidade só viria a ser descriminalizada em 1988. Desde então, foram criadas proteções contra a discriminação em locais de trabalho, estabelecimentos de ensino e unidades de saúde. Não há casamento civil no país, mas há reconhecimento de casamentos homoafetivos firmados no exterior.
Na Cisjordânia, a homossexualidade deixou de ser crime em 1951, período em que o território estava sob domínio da Jordânia antes de ser ocupado militarmente por Israel a partir de 1967. Hoje, o território é parcialmente administrado pela Autoridade Nacional Palestina (ANP), e não há proteções específicas para a comunidade LGBT+.
Já na Faixa de Gaza, continua em vigor o Código Civil promulgado em 1936 durante o mandato britânico. A lei pune relações carnais “contrárias à ordem natural” com até dez anos de prisão, o que geralmente é interpretado no sentido de criminalizar relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo.
Não há informações precisas sobre a aplicação da lei nos dias de hoje –a Faixa de Gaza é governada desde 2007 pelo Hamas, que tem orientação islamita e conservadora. Após os atentados terroristas de 7 de outubro, que deixaram 1.200 israelenses mortos, Tel Aviv invadiu o território com o objetivo de depor a facção, em uma campanha que já matou quase 18 mil palestinos.
Organizações de direitos humanos como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch afirmam que Israel pratica um regime de opressão e dominação que equivale ao crime de apartheid contra todos os palestinos, inclusive os LGBT+.
Para o artista Bashar Murad, que vive em Jerusalém, analisar a situação dos palestinos somente com base nos direitos LGBT+ é uma atitude reducionista. “Neste momento, há palestinos queer em Gaza que não estão muito preocupados com o fato de serem queer. Estão tentando fugir de bombardeios que matam indiscriminadamente“, diz.
Murad conta que, quando criança, só pensava em ser a Britney Spears. Sendo palestino, porém, acabou tendo que falar sobre política em suas músicas. “Eu acredito no poder da arte, da música e da cultura como um meio de resistência. Na pista de dança, eu não vejo fronteiras, vejo pessoas buscando escapar das coisas que nos afetam no dia a dia.”
Ele diz que vem reavaliando sua relação com símbolos da comunidade LGBT+. “Quem a bandeira do arco-íris vem representando? Não permitirei que usem a minha identidade para justificar a opressão contra o meu próprio povo e contra mim.”
O ativista Omar al-Khatib afirma que a liberdade dos palestinos LGBT+ passa necessariamente pela luta contra a ocupação israelense.
“Essas questões são inseparáveis, porque uma pessoa queer não consegue ser verdadeiramente livre sob um regime violento de colonialismo de assentamento. Isso não significa que a liberação queer seja uma questão secundária. O pensamento queer nos ensina a resistir a qualquer forma de injustiça e opressão”, diz.
Ele vive em Izariyya, um vilarejo que historicamente faz parte de Jerusalém, mas que acabou sendo isolado pelo muro construído por Israel no início dos anos 2000. Assim, o local hoje efetivamente vive espremido entre o muro e assentamentos israelenses na Cisjordânia.
Até o ano passado, o ativista fazia parte da Al-Qaws (arco-íris, em árabe), principal organização LGBT+ palestina. Em 2019, a ANP proibiu temporariamente as atividades da Al-Qaws na Cisjordânia, sob a justificativa de que o grupo representava uma ameaça contra os “valores da sociedade palestina”.
“A decisão da ANP de proibir uma organização queer é definitivamente homofóbica, mas por trás dessa homofobia está o fato de que a ANP é um regime fantoche que trabalha para o sistema colonial”, afirma Khatib.
Ele diz acreditar que a luta dos palestinos está conectada com a das pessoas LGBT+ no Brasil e em outros países do chamado Sul Global, pois esses povos estão acostumados com as heranças do colonialismo.
O jornalista Kais Husein, que vive no Rio Grande do Sul, afirma que palestinos LGBT+ enfrentam simultaneamente a ocupação israelense e o fundamentalismo religioso dentro de suas comunidades.
Ele, que é comunicador da Fepal (Federação Árabe-Palestina do Brasil), conta que já sofreu assédio de soldados e colonos israelenses em aplicativos de paquera nas ocasiões em que esteve na Palestina.
“Os colonos têm o luxo de viver em liberdade em terras roubadas. E, ainda por cima, aplaudem um genocídio em nome das pessoas LGBT+”, diz.
Kais lembra ainda que a conquista dos direitos LGBT+ em qualquer lugar passa por processos de mobilização coletiva. “A ocupação israelense suprime a organização da sociedade civil palestina. Não temos soberania para promover políticas públicas que ofereçam proteção à comunidade LGBT+.”