Depois do triunfo da Revolução Cubana, em 1º de janeiro de 1959, sete ex-guerrilheiros assumiram a direção do Estado na América Latina: Fidel e Raúl Castro, Daniel Ortega, José Mujica, Dilma Rousseff, Salvador Sánchez Cerén e Gustavo Petro, que deixaram boas e más experiências. Em qual das duas se encontra o governo colombiano atual?
Como pode ser visto na tabela apresentada a seguir, em seis nações latino-americanas ex-guerrilheiros chegaram à liderança do Estado nas últimas décadas. Em dois países, Cuba e Nicarágua, como resultado das duas únicas revoluções triunfantes na América Latina (1959 e 1979), que derrubaram os governos ditatoriais do general Fulgencio Batista e do clã Somoza; em outros dois países, Brasil e Uruguai, ex-membros de grupos guerrilheiros derrotados, José Mujica e Dilma Rousseff, após anos de prisão e penosas torturas, ressurgiram das cinzas e triunfaram em eleições transparentes em 2010 e 2011, respectivamente. Finalmente, em duas nações, El Salvador e Colômbia, ex-membros de movimentos guerrilheiros que assinaram acordos de paz e fizeram a transição “das armas para a política” foram eleitos chefes de Estado, Salvador Sánchez Cerén (2014) e Gustavo Petro (2022).
Não incluímos Hugo Chávez nesse quadro porque, embora quando jovem oficial estivesse sob a influência do líder guerrilheiro mais emblemático da época, Douglas Bravo —que não abraçou o processo de paz do final da década de 1960 e continuou armado por meio do Partido de la Revolución Venezolana e sua Frente Armada de Liberación Nacional (PRV-FALN)—, rompeu os laços em 1986. Naquele ano, Chávez formou uma facção militar clandestina chamada Movimento Bolivariano Revolucionário (MBR-200), que seria fundamental para sua ascensão ao poder anos mais tarde. Em outras palavras, Chávez não foi, a rigor, um guerrilheiro.
Presidentes ex-guerrilheiros na América Latina
País |
Presidente |
Período |
Grupo |
Partido ou coalizão de governo |
Cuba |
Fidel Castro Raúl Castro |
1959-2008 2008-2018 |
Movimento 26 de Julio |
Partido Comunista de Cuba |
Nicarágua |
Daniel Ortega |
1985-1990 2007-2012 2012-2017 2017-2022 2022-2027 |
Frente Sandinista de Liberación Nacional |
FSLN |
Uruguai |
José Mujica |
2010-2015 |
Movimiento de Liberación Nacional – Tupamaros |
Frente Unido |
Brasil |
Dilma Rousseff |
2011-2016 |
Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares |
Partido dos Trabalhadores |
El Salvador |
Salvador Sánchez |
2014-2019 |
Frente Farabundo Martí para la Liberación Nacional |
FMLN |
Colômbia |
Gustavo Petro |
2022-2026 |
Movimento 19 de Abril |
Pacto Histórico |
Cuba: a família Castro
Os irmãos Fidel e Raúl Castro estiveram à frente do Estado por 59 anos, entre 1959 e 2018, e implantaram gradualmente um sistema de partido único. Em 1961, o Movimento 26 de Julho se fundiu com o Partido Socialista Popular e outras organizações para formar as chamadas Organizações Revolucionárias Integradas (ORI), que, depois de muitos altos e baixos, em 3 de outubro de 1965 assumiu o nome definitivo de Partido Comunista de Cuba (PCC), que governa ininterruptamente até hoje. Fidel Castro, o presidente mais longevo do mundo desde 1900 até os dias atuais —esteve à frente do Estado por 49 anos, entre 1959 e 2008— foi substituído por seu irmão Raúl, que, por sua vez, foi substituído por Miguel Díaz-Canel.
Cuba deixou de ser, há muitos anos, a “Nova Jerusalém” —como foi para a minha geração de esquerda— e hoje, salvo uma surpreendente mudança de rumo (por exemplo, a adoção do modelo atual da República Socialista do Vietnã, com sua ampla economia de mercado), vive uma crise ainda maior do que a que sofreu após o colapso da União Soviética, no chamado “período especial”.
Nicarágua: a família Ortega
Daniel Ortega tornou-se inicialmente o chefe de Estado como membro da junta que substituiu Anastasio Somoza Debayle e seu sucessor por algumas horas entre 17 e 18 de julho de 1979, Francisco Urcuyo, após a fuga do último membro da dinastia Somoza.
A Junta de Governo de Reconstrução Nacional era composta por seu coordenador, Daniel Ortega, membro da Direção Nacional Conjunta do FSLN; Moisés Hassan, da Frente Patriótica Nacional; Sergio Ramírez, escritor e membro do chamado Grupo dos Doze; Alfonso Robelo, empresário e membro do Movimento Democrático Nicaraguense; e, por último, Violeta Barrios, viúva do diretor do jornal La Prensa, Pedro Joaquín Chamorro, que foi assassinado pela ditadura somozista em 1978 e que viria a ser “a faísca” da ditadura de Somoza; para recordar um texto de Mao Tse-tung.
Tratava-se de uma junta pluralista que permitiu deixar para trás a atroz dinastia Somoza —que comandou o país com mão de ferro entre 1947 e 1987— e iniciar a transição para a democracia. Em 1985, Daniel Ortega foi eleito em uma eleição limpa em nome do FSLN, seguido pelos governos de Violeta Barrios, Arnaldo Alemán e Enrique Bolaños até o retorno triunfante de Daniel Ortega em 2007, que até hoje não abandonou o poder graças a inúmeras fraudes eleitorais, truques legais e perseguição à oposição.
Ou seja, nos dois países em que houve revoluções triunfantes, seus líderes, desde o início (Fidel Castro) ou anos depois (Daniel Ortega), acabaram sendo conduzidos ao poder com uma clara liderança caudilhista com traços messiânicos.
Uruguai: José Mujica
O terceiro ex-guerrilheiro a se tornar presidente na América Latina, entre 2010 e 2015, foi José Mujica, ex-dirigente do Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros. Após a transição para a democracia e sua saída da prisão —onde passou 15 anos em confinamento solitário—, ele se tornou membro da liderança do Movimento de Participação Popular (MPP), um componente da Frente Ampla que o levou ao poder e que reunia os principais partidos e correntes políticas da esquerda uruguaia.
O “presidente mais pobre do mundo”, que aos 88 anos de idade ainda vive em sua modesta casa de campo nos arredores de Montevidéu, na companhia da também ex-presidente e ex-senadora Lucía Topolansky, é de longe o mais admirável e respeitado dos ex-guerrilheiros que chegaram ao poder na América Latina. Sua humildade, sua enorme sensibilidade humana, sua pureza e sua capacidade de criar consenso o tornam “fora do comum”.
Brasil: Dilma Rousseff
Um ano depois de Mujica, em 1º de janeiro de 2011, Dilma Rousseff tornou-se a primeira mulher a se tornar presidente da República no Brasil. A “Joana D’Arc da subversão” —como foi chamada por um promotor do Exército durante seu julgamento em um tribunal militar— era integrante do movimento guerrilheiro Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares (VAR Palmares), que foi um dos grupos que enfrentaram o regime militar instalado no Brasil em 1964. Detida em 1970, foi severamente torturada e mantida em condições subumanas por três anos.
O balanço de seu governo é, sem dúvida, agridoce, pois suas importantes conquistas —em 2013, a revista Forbes a classificou, depois de Angela Merkel, como a segunda mulher mais proeminente do mundo— foram ofuscadas por seu impeachment pelo Senado por crime de responsabilidade.
El Salvador: Salvador Sánchez Cerén
O professor e mais tarde membro da liderança das Forças Populares de Libertação (FPL), uma das cinco organizações que compunham a FMLN, tornou-se presidente da República em substituição ao renomado jornalista Mauricio Funes, que esteve à frente do Executivo entre 2014 e 2019 em nome da FMLN e que acabaria residindo na Nicarágua —onde Daniel Ortega lhe concedeu a nacionalidade— para escapar da Justiça em seu país, que o procurava por atos de corrupção.
O balanço dos dois mandatos do FMLN não foi muito animador, pois seu fracasso manifesto em diversos níveis e, em especial, na gestão da ordem pública interna abriu caminho para Nayib Bukele, o líder autoritário mais cool do mundo.
Colômbia: Gustavo Petro
E, finalmente, na Colômbia de hoje, o ex-membro do Movimento 19 de Abril Gustavo Petro está à frente do Estado.
O balanço de ex-guerrilheiros no poder tem sido positivo ou negativo?
A resposta não é óbvia, pois houve tanto experiências muito positivas, como foi o caso de José Mujica no Uruguai, quanto desastres manifestos, como o de Daniel Ortega (especialmente o Ortega dos últimos anos) na Nicarágua. Em outras palavras, o equilíbrio é agridoce.
De qualquer forma, se excluirmos os casos de Cuba, com seu sistema de partido único, e da Nicarágua, nos últimos anos, por meio de uma “autocracia eleitoral”, ou seja, um pluralismo fictício construído com base no benefício do partido no poder e na redução da oposição, no restante das experiências (Uruguai, Brasil e El Salvador) a democracia liberal se manteve firme pelo menos durante o mandato desses governos —depois vieram os governos Bolsonaro e Bukele— e, no caso da Colômbia, é um processo em andamento, cujo resultado desconhecemos.
O êxito ou o fracasso depende de diversos fatores que exigiriam uma investigação muito rigorosa (por exemplo, a força ou a fraqueza das tradições democráticas que não eram semelhantes, por exemplo, no Uruguai e na Nicarágua), mas, nesta ocasião, gostaria de destacar o papel da personalidade e o projeto político do líder que chega ao poder.
A personalidade caudilhista de um Daniel Ortega (e a arrogância do triunfo revolucionário) não é a mesma que a personalidade comedida de um José Mujica (e a humildade da derrota).
Os presidentes ex-guerrilheiros que iniciaram mudanças graduais com altos níveis de consenso nacional foram os mais bem-sucedidos (Brasil, Uruguai). Por outro lado, os presidentes que embarcaram em projetos rupturistas acabaram tendo resultados fracos a longo prazo (Cuba, Nicarágua).
Esse complexo quadro é um convite ao otimismo ou ao pessimismo? A Colômbia está se encaminhando para uma “autocracia eleitoral” como a Nicarágua de Daniel Ortega? Depois de um governo progressista, o pêndulo político oscilará para a extrema direita, como aconteceu em El Salvador com Nayib Bukele e no Brasil com Jair Bolsonaro? Ou depois do governo de Petro haverá um líder moderado de centro, centro-direita ou centro-esquerda?
Não podemos prever o futuro. Mas, de qualquer forma, espero que Petro se olhe no espelho: com quem ele quer se parecer: Mujica ou Ortega?