Em novembro de 1983, um ano antes de concorrer ao segundo mandato, Ronald Reagan recebeu o então primeiro-ministro de Israel, Yitzhak Shamir, na Casa Branca e discorreu, nostálgico, sobre seu papel na liberação de campos de concentração nazistas, no final da Segunda Guerra Mundial. O fato é que Reagan passou toda a guerra em Culver City, na Califórnia, como ator de filmes B, frequentemente fazendo papeis de tenentes ou recrutas.
Em 1986, com Reagan já reeleito e dando sinais evidentes do Alzheimer cujo diagnóstico só seria revelado em 1994, a repórter Lesley Stahl, da rede CBS, foi se despedir dele no Salão Oval. A jornalista havia passado mais de uma década como uma das mais visíveis correspondentes da Presidência.
Stahl recordou em suas memórias, em 2011, que ficou perplexa ao notar que o presidente com quem tanto convivera não a reconhecia e aparentava estar perdido. Ela concluiu que, naquela noite, teria que “contar aos compatriotas que o presidente dos Estados Unidos é um cadete espacial trêmulo”.
Stahl, assim como a elite dos repórteres lotados na Casa Branca, não revelaram ao público o que discutiam abertamente na sala de imprensa. Entre estes colegas está Chris Wallace, 76, cujo programa na CNN estampava na tela, no último sábado, a manchete: “A idade de Joe Biden é problema maior do que os indiciamentos de Donald Trump?”
Voltamos a 2016, à obsessão malfeitora da imprensa política dos EUA com os emails de Hillary Clinton e ao papel de cúmplice da mídia em facilitar a eleição do mais criminoso presidente da história do país.
Numa semana em que o republicano de 77 anos fez ameaças cada vez mais delirantes, sugerindo que a Rússia invada países-membros da Otan, quem exibe senilidade é o New York Times, que não para de debater o óbvio envelhecimento de Joe Biden, 81, com uma hipocrisia editorial notável. Interlocutores de Joe Biden não relatam preocupações com demência, mas, no domingo, o Times afirmava, na capa: “Biden é mais prejudicado por erros do que Trump.”
É o tipo de cobertura descrita como “séria negligência jornalística” por ninguém menos do que Margaret Sullivan, ex-ombudsman do Times e hoje professora de jornalismo da Universidade Columbia.
Como é possível sugerir que os lapsos de memória de Joe Biden são mais sérios do que os sinais de demência de Donald Trump, um sujeito que Noel Casler, ex-produtor do seu reality show, garante, há anos, cheirava regularmente comprimidos esmagados de metanfetamina no set? O dito produtor nunca foi interpelado judicialmente pelos incidentes que detalhou.
Na terça (13), a jovem e popular deputada nova-iorquina Alexandria Ocasio-Cortez alertou no ar, durante o enésimo segmento sobre a idade de Biden: “Precisamos entender o que estamos contemplando neste país. Se Donald Trump for eleito presidente, não sabemos se haverá uma próxima eleição com integridade.”
Pode-se debater a sensatez do idoso Biden em ter insistido em se candidatar. Pode-se criticar sua atitude sebastianista, o impulso de, mais uma vez, salvar o país do monstro Trump. Mas ele não roubou as primárias, e os eleitores ignoraram o único pré-candidato rival, Dean Philips, um mentecapto que sugeriu oferecer um ministério a Elon Musk.
A imprensa política deve ao público cobrir o que está em jogo, as consequências reais da eleição que ameaça o Estado Democrático de Direito. E não fulanizar a campanha.
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