Tirando o headset Vision Pro, a Apple investiu em produtos menos ousados (ou mais seguros) nos últimos anos. Ela preferiu focar em atualizações no iPhone, iPad, Apple Watch e Mac com entradas pontuais em novos segmentos, como os fones sem fio AirPods.
Porém, a companhia também passou uma década preparando a chegada de um automóvel de fabricação própria. O projeto de lançar um carro, que seria elétrico e talvez até autônomo, movimentou enormes quantias de tempo, dinheiro e funcionários — até ser encerrado sem dar frutos.
Mas o que impediu o projeto de acelerar e virar realidade? Foram muitos os obstáculos na pista, tanto técnicos quanto corporativos.
O início de um sonho
Os planos para o lançamento do carro começaram a tomar forma na Apple em 2014. Esse foi o ano em que a marca comprou a fabricante de fones de ouvido Beats, lançou o iPhone 6 e apresentou a primeira geração do Apple Watch.
Segundo reportagens tanto da época quanto recentes, a iniciativa partiu do próprio CEO, Tim Cook. O objetivo era chegar no setor automotivo como mais um mercado em que a Apple entra e revoluciona — assim como aconteceu com música digital e celulares inteligentes.
Tim Cook, substituto de Steve Jobs como CEO da Apple.Fonte: Getty Images/Reprodução
O carro da Maçã foi batizado internamente de Project Titan. De acordo com o jornalista Mark Gurman, da Bloomberg, a Apple produziu ao menos cinco protótipos ao longo da década.
O último deles era uma minivan na cor branca, com portas deslizáveis para o lado e um teto de vidro, mostrado pela equipe aos executivos em 2020. Recebido de forma mista, o carro tinha um “painel gigante”, um “poderoso sistema de som” e janelas com ajuste de opacidade.
A linha do tempo do carro da Apple
- 2014 — Tim Cook monta a primeira equipe para criar um carro; Tesla é potencial alvo de aquisição.
- 2015 — primeiros rumores circulam na imprensa, com previsão para sair em 5 anos; Apple contrata engenheiros de rivais.
- 2017 — Cook fala pela primeira vez sobre um “sistema autônomo”; a Califórnia dá permissão à empresa para testes.
- 2018 — ex-chefe de IA do Google, John Giannandrea é contratado para liderar o projeto, já com 5 mil funcionários.
- 2019 — as primeiras demissões em massa na divisão, com mais de 200 funcionários cortados.
- 2020 — pandemia pausa desenvolvimento do carro, mas rumores indicam que segue autônomo e será produzido em 4 anos.
- 2021 — Apple negocia com Hyundai, Mercedes-Benz ou Kia para fabricar o veículo, mas não fecha acordos; empresa faz nova rodada de contratações de engenheiros e executivos.
- 2022 — time do Project Titan é “desmanchado temporariamente” em remanejamento de equipes.
- 2023 — especulações sugerem que o carro agora é apenas elétrico, mas ainda vai sair.
- 2024 — internamente, Apple cancela o projeto do carro elétrico para focar em IA.
A empresa até obteve uma licença do estado da Califórnia para fazer testes em rodovias nos EUA. Entretanto, a maior parte dos experimentos foi em automóveis de outras montadoras para testar sistemas de navegação.
A Apple cogitou também em vários momentos comprar uma empresa da área ou entregar parte da fabricação para uma montadora experiente. No início do projeto, a ainda jovem Tesla quase foi alvo de uma aquisição, mas Elon Musk e Tim Cook não chegaram a um acordo.
Musk em evento da Tesla em 2015: acordo quase saiu nesse período.Fonte: Getty Images/Reprodução
Anos depois, a sul-coreana Hyundai ficou a poucos passos de virar a fornecedora da estrutura e das fábricas, mas a aliança também não se concretizou. Cada vez mais, o carro da Apple parecia distante de sair do papel.
Os problemas do carro da Apple
O primeiro prazo estabelecido com o início dos trabalhos no Project Titan, em 2015, era lançar o carro em cinco anos.
O cenário após esse período chegar, entretanto, era caótico: a empresa montou e desmontou a equipe responsável mais de uma vez, com problemas em várias etapas do desenvolvimento:
Dificuldades técnicas
Um dos principais obstáculos era justamente a questão prática, envolvendo engenharia e sistemas. A Maçã lutou ao longo dos anos com vários problemas técnicos em relação ao modelo, da aprovação do design até atingir o nível de autonomia desejado.
Inicialmente, a companhia planejava lançar um carro com Nível 5 de autonomia, que é o mais alto grau de direção inteligente idealizado pela indústria.
Criar um sistema de autonomia foi um dos grandes desafios da Apple.Fonte: Getty Images/Reprodução
O máximo que os protótipos teriam alcançado foi o Nível 3, que ainda exige a participação do motorista humano — e, nos últimos meses, o Titan era somente elétrico e não mais com piloto automático.
Outro obstáculo era o alto custo do projeto, especialmente para uma empresa que não é do setor automotivo e precisaria montar uma estrutura do zero. Segundo a Bloomberg, foram gastos US$ 1 bilhão por ano no desenvolvimento do carro ao longo de uma década.
Pressão dos investidores
A pressão de acionistas sobre o lançamento do carro também era alta, compatível com a expectativa construída pela própria marca.
Em especial, os investidores reclamavam da demora no lançamento e o atraso no projeto. Além disso, um tema em debate era a possível baixa margem de lucro no lançamento de um automóvel — em especial em comparação com eletrônicos, que costumam gerar uma receita proporcionalmente maior.
Falta de foco
A própria Apple nunca pareceu tão segura em relação ao carro. Para começar, a companhia não se decidia se recorreria a outras empresas para a fabricação e nem mesmo sobre o formato do veículo. Ele chegou até a ter um formato no estilo de cápsula, mas terminou parecendo uma minivan.
O protótipo final do carro da Apple lembrava o modelo da startup Canoo.Fonte: Canoo/Reprodução
Além disso, a marca se prejudicou com o “vai e vem” de equipes, com constantes rodadas de demissões e contratações. Executivos que chegaram para liderar o projeto saíam rapidamente, deixando o setor sem um responsável.
Ao que tudo indica, o Project Titan foi cancelado para a Apple direcionar os esforços para o campo da IA. Os primeiros frutos nesse campo devem ser apresentados ao público já em 2024 — ao contrário do carro, que ficou uma década sem passar da fase de protótipos.