Este texto é uma espécie de Folha por Folha, seção do jornal na qual profissionais relatam suas experiências na confecção de reportagens, séries, fotografias, assim como possíveis bastidores das mesmas.
Um dos mais importantes momentos deste 2024, quando ele estiver lá no final, certamente terá sido a morte de Mario Jorge Lobo Zagallo, maior campeão das Copas do Mundo.
Zagallo, que morreu no Rio de Janeiro no fim da noite de sexta (5), aos 92 anos, de falência de múltiplos órgãos, ganhou a Copa duas vezes como jogador (1958 e 1962), uma como treinador (1970), uma como auxiliar técnico (1994).
O texto principal da Folha sobre a sua morte tem a minha assinatura. Foi publicado pouco depois do anúncio do óbito, que ocorreu em rede social do ex-jogador e ex-técnico, uma das figuras mais notórias da história do futebol.
Quem lê o texto (se não fez, ainda pode fazê-lo) percebe que é longo e talvez se questione: como foi redigido em tempo tão curto?
A resposta é: não foi.
A execução de perto de 100% dele ocorreu em 2011, 13 anos atrás –coincidentemente, 13 é o número da sorte de Zagallo. (“Perto de 100%” porque, ao se ter a confirmação da morte, antes da publicação é preciso incluir informações como dia, local e causa.)
À época, o então editor de Esporte José Henrique Mariante, hoje ombudsman da Folha, incumbiu-me da tarefa de deixar escrito o obituário do Velho Lobo.
Por que isso? Porque o jornal, a fim de evitar ser pego de surpresa e ter de designar alguém para escrever “em cinco minutos” um texto sobre alguém famoso que morreu, busca produzir com antecedência o conteúdo.
São eleitos personagens de destaque em seus respectivos segmentos (cultura, esporte, política, economia etc.), geralmente os que estão com idade mais avançada e/ou que enfrentam problema de saúde.
E quem escreve? Geralmente é designado um jornalista ou colunista do jornal com conhecimento da área ou um colaborador que saiba muito da vida da pessoa.
É possível produzir um obituário sem ter contato com o famoso em questão?
Sim, e a maioria é feita assim, em um trabalho de imersão em pesquisa em fontes confiáveis –os arquivos da Folha são uma delas.
Contudo o melhor, além da pesquisa, é conversar com o personagem e ouvir do próprio a sua história –parentes, amigos, colegas de profissão, biógrafos também são indicados para enriquecer o material.
No caso de Zagallo, isso foi viável. Houve um acerto para que eu fosse ao Rio de Janeiro falar pessoalmente com ele.
Ao agendar a conversa, não dá para dizer: “Olha, estou indo aí falar com você porque tenho que elaborar um texto para o dia em que você morrer”. Pega mal, e a negativa será a resposta natural.
Então a combinação com Zagallo, no contato telefônico, foi por uma entrevista para a Folha.
Ele daria suas impressões sobre a seleção brasileira, que estava sob o comando do técnico Mano Menezes e se preparava para a Copa do Mundo de 2014, que seria no Brasil.
Então com 80 anos, Zagallo recebeu-me em um começo de tarde ensolarado da primavera de 2011 em um salão do luxuoso condomínio em que morava, no 13º andar, na Barra da Tijuca.
Quando cheguei, com algum atraso porque o voo São Paulo-Rio saíra em horário posterior ao previsto, o fotógrafo Rafael Andrade já estava presente. Ele tinha pressa para que a entrevista começasse, pois havia outras pautas a cumprir no dia.
Rafael fez as fotos e se mandou. Gravador ligado, ficamos eu e Zagallo, e o ex-ponta-esquerda falou comigo por cerca de uma hora e meia.
Muito simpático e cordial, usava camisa social branca com listras pretas na vertical, estava com os inseparáveis óculos, e a entrevista foi conduzida do modo como planejado.
Depois de ele comentar sobre a seleção brasileira (com elevadas doses de patriotismo; para ele, o Brasil não podia deixar de ganhar a Copa em casa pela segunda vez), direcionei as perguntas para o lado pessoal e profissional –afinal, esse era meu objetivo principal.
E Zagallo, com muita lucidez, fez um amplo relato da sua vida, desde a infância até se tornar um octogenário. Uma baita história, e obtida, conforme desejado, da “fonte zero” (no jornalismo, a mais confiável).
A missão estava cumprida.
A entrevista com Zagallo foi publicada dias depois, e o obituário pôde ser produzido com a calma e o cuidado necessários.
Esse não foi o primeiro obituário que fiz (o de Carlos Alberto Torres também fui eu que escrevi, e há poucos outros que estão guardados), e não será o último.
É um trabalho que tem que ser feito, faz parte da profissão, porém o desejo que fica é que um texto de obituário nunca venha a ser lido, por motivo óbvio.
Só que inevitavelmente, um dia, será. Como foi o de Zagallo na madrugada do dia 6 de janeiro de 2024, um sábado.