Rami Hamdan al-Halhouli acendeu um fogo de artifício e o segurou acima da cabeça. Ele não tinha noção de que aqueles seriam seus últimos segundos de vida.
Em seguida, três estalos agudos. O primeiro foi um tiro disparado por um policial, o segundo foi o foguete saindo da mão de Rami e o terceiro foi o som do artefato explodindo no ar acima do corpo do menino, em uma chuva brilhante de tom vermelho e dourado.
Rami al-Halhouli era um menino palestino de 12 anos de idade. Ele nasceu e cresceu no campo de refugiados de Shuafat, na parte oriental de Jerusalém. Lá, moram cerca de 16 mil pessoas.
Na terça-feira (12), Rami estava brincando com seu irmão e seus amigos em frente à casa da família. Eles então pediram que o menino acendesse um fogo de artifício. Rami apontou o artefato para longe dele, praticamente na direção dos policiais de fronteira de Israel, mas para cima, para que explodisse no céu.
O vídeo do incidente mostra que, antes mesmo do lançamento do foguete, Rami foi atingido por um tiro disparado por um policial de fronteira, posicionado a certa distância do local. A polícia afirmou em declaração que um único tiro foi disparado em direção a um suspeito que havia “colocado em risco as forças policiais ao disparar fogos de artifício na sua direção”.
A polícia ainda não liberou o corpo de Rami para a família e não respondeu a questões específicas sobre o disparo. Mas a família contou à BBC na quarta-feira (13) que a bala atingiu Rami no coração. “Não havia esperança”, declarou seu irmão mais velho, Mahmoud, de 19 anos. Ele correu em direção a Rami no momento do tiro. “Ele já estava morto.”
A mãe de Rami, Rawia, tem 50 anos de idade. Ela estava dentro da casa da família no momento do tiro. Ela ouviu alguém gritar seu nome e saiu correndo no escuro da noite.
“No princípio, não achei que fosse algo de ruim porque não havia confrontos com a polícia, nenhuma demonstração por perto, nem sons de tiros ou granadas”, contou ela. “Até que vi o corpo de Rami estirado no chão e achei que ele tivesse caído durante as brincadeiras das crianças. Quando eles viraram o corpo, vi o buraco no peito. A bala estava no seu coração. Então, comecei a gritar.”
Rami é um dos seis palestinos mortos a tiros pelas forças de segurança de Israel nos territórios ocupados da Cisjordânia e da parte oriental de Jerusalém na terça-feira (12). Suas mortes marcam um início sombrio do Ramadã, o mês sagrado dos muçulmanos. O estado de ânimo na cidade já estava marcado pela guerra entre Israel e o grupo armado palestino Hamas na Faixa de Gaza.
Em entrevista coletiva na manhã da última quarta, o ministro de Segurança Nacional de Israel, Itamar Ben-Gvir, de extrema-direita, elogiou o policial que atirou em Rami, chamando-o de “herói e guerreiro”. Para o ministro, ele havia feito um “trabalho exemplar” e receberia todo o apoio do seu ministério. Ben-Gvir rotulou Rami al-Halhouli como “terrorista”.
‘Estavam brincando’
Não muito longe da delegacia onde falava o ministro, na quarta-feira, Rawia al-Halhouli estava sentada na sala de estar de casa, rodeada por amigos, parentes e outras pessoas enlutadas, em lágrimas. Eles vieram, um de cada vez, prestar suas homenagens.
Fora de casa, no quintal, o pai de Rami, Ali, de 60 anos, estava sentado com os homens da família e amigos. Ele só conseguiu reter as lágrimas por poucos minutos.
“Eu pergunto, um menino com 12 anos de idade, como ele é um terrorista?”, questionou Ali. “Ele estava jejuando e interrompeu o seu jejum para brincar com as outras crianças. Estamos no Ramadã, eles soltaram fogos. Eles estavam brincando.” Rami era um “bom menino”, diz Ali.
“Ele era bom na escola, era inteligente, ele ajudava os nossos vizinhos. Esta era a sua vizinhança e ele nunca foi muito longe. Ele não criava problemas.” O pai declarou que o policial que matou Rami estava “apenas seguindo ordens. Na verdade, tudo vem de Ben-Gvir. Ele não deixará nenhum palestino em paz.”
Na quarta-feira, a BBC pediu à polícia israelense que fornecesse alguma evidência que mostrasse sinais de violência, distúrbios ou qualquer outro incidente preocupante na região, nos dias ou horas que antecederam o disparo, ou qualquer evidência contra Rami al-Halhouli. Nada foi fornecido.
Em vez disso, a polícia fez referência a uma declaração por escrito, publicada na terça, descrevendo “um violento distúrbio ocorrido em Shuafat, incluindo o lançamento de coquetéis molotov e o disparo direto de fogos de artifício em direção às forças de segurança”.
Folhetos em árabe distribuídos pela polícia israelense no campo de Shuafat na terça-feira, que foram entregues à BBC por moradores, afirmam que de 15 a 20 jovens haviam se organizado para ir às orações noturnas “com o propósito de violar as regras, lançando fogos de artifício e atirando coquetéis molotov”.
“A polícia nunca irá tolerar atos de violência de nenhum tipo e tomará ações rigorosas contra qualquer pessoa que aja com violência ou tente ferir os policiais”, dizem os panfletos.
A polícia de fronteira de Israel anunciou na quarta-feira à noite que foi colocado em liberdade condicional um policial que estava em custódia, depois de passar por interrogatório em relação ao disparo no campo de Shuafat.
Houve grande aumento da violência na Cisjordânia ocupada desde o início da guerra na Faixa de Gaza. Pelo menos 418 palestinos, entre membros de grupos armados e civis, foram mortos pelas forças israelenses, segundo a ONU. E, no mesmo período, foram mortos 15 israelenses, incluindo quatro agentes das forças de segurança.
Os dados mais recentes da organização israelense de direitos humanos B’Tselem indicam que 519 crianças foram mortas por Israel na parte oriental de Jerusalém e na Cisjordânia entre o ano 2000 e o início de outubro de 2023.
“A política de Israel é rápida no gatilho quando o assunto é lidar com os palestinos”, afirmou a porta-voz da B’Tselem, Dror Sadot. “Temos dezenas de casos como este documentados ao longo dos anos”, afirma ela. “Ainda não investigamos este caso específico em Shuafat, mas aparentemente o menino não representava perigo para a polícia.”
O médico Salim Anati, que morou e trabalhou no campo de Shuafat desde a sua construção, em 1965, declarou à BBC que, enquanto morou ali, tratou de pelo menos 20 crianças que haviam perdido um ou os dois olhos atingidos por balas de borracha. E ele conheceu pelo menos dez que foram mortas.
“Muitas crianças são feridas, muitas são aprisionadas e, quando não são presas, elas são impedidas de sair de casa”, conta Anati. “A vida é muito difícil para as crianças por aqui. Rami não teve nem a sorte de escapar do campo”, acrescenta o médico. “Toda a sua infância se passou sob ocupação.”
No seu último dia de vida, Rami dormiu até meio-dia, segundo sua mãe Rawia. Depois, ele brincou dentro de casa até que ela pediu que ele ajudasse a preparar o Iftar —a refeição noturna que interrompe o jejum diário do Ramadã no pôr do sol.
Depois da refeição em família, Rami foi à mesquita para as orações. Ele voltou para casa e pediu dinheiro trocado aos seus pais para ir até a loja. Seu pai negou porque queria que ele ficasse em casa. “Mas eu fui até ele e disse baixinho, ‘vou dar algum dinheiro se você for direto até lá e voltar'”, conta Rawia. “Cinco minutos depois de sair de casa, ele estava morto.”
Este texto foi publicado originalmente aqui.
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