Há muitos fatos conhecidos sobre a vida e a obra de Sigmund Freud (1856-1939). Existe o Freud dos livros. Aquele que criou o método psicanalítico. O pensador dos sonhos, do inconsciente, da sexualidade ou do ego. Aquele que escapou de Viena, na Áustria, sob a ameaça nazista. Ou ainda o fumante de charutos.
Pouco se sabe, no entanto, sobre os laços internacionais, em particular, com regiões tão distantes, como a América Latina. Um dos intelectuais mais importantes do século 20 tinha uma ligação particular com este canto do planeta, largamente ignorado pela Europa naquela época.
Uma nova exposição no Museu Freud, no nordeste de Londres, onde o pai da psicanálise morreu em setembro de 1939, fala sobre essa conexão. Por meio de cartas, fotografias, esculturas e livros, a exposição explora o tremendo impacto de Freud na América Latina, a tal ponto que hoje a região é reconhecida como um importante centro de psicanálise.
Além disso, a mostra revela o fascínio do médico e pesquisador austríaco pelo continente, estabelecendo relações estreitas com cientistas brasileiros, peruanos e chilenos, entre outros.
‘Sobre a coca’
Mas como começou a ligação de Freud com a América Latina? Segundo os pesquisadores, a resposta tem a ver com o uso da coca.
Na década de 1880, o pesquisador interessou-se por esta droga —que na altura não era ilegal— e descobriu que a digestão e o humor melhoravam após beber água misturada com cocaína dissolvida.
As descobertas de Freud a esse respeito foram registradas em um artigo de 1884 chamado Über Coca (sobre a coca), onde pela primeira vez a América Latina é mencionada em um de seus escritos, ao explorar o uso tradicional da folha da planta coca no Peru e na Bolívia.
“A relação começa com as pesquisas sobre o uso da coca como medicamento ritual no continente. Foi seu primeiro contato intelectual [com a região]”, explica Mariano Ben Plotkin, especialista em história da psicanálise e autor de “Estimado doctor Freud: una historia cultural del psicoanálisis en América Latina”.
O historiador acrescenta que para isso foi útil o domínio do espanhol, língua que ele aprendeu ainda criança, como autodidata, para poder ler Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, no original. “Freud fez um trabalho único sobre o uso anestésico da coca, que hoje é muito controverso”, acrescenta Plotkin.
Anos depois desses estudos, o médico deixou de defender os benefícios estimulantes e analgésicos da coca, enquanto surgiam notícias sobre o nível de dependência e mortes por overdose.
‘Amigos’ latino-americanos
Mesmo ao abandonar a coca, ele não se esqueceu da América Latina. A partir de Viena, Freud continuou a estreitar laços com importantes médicos, psiquiatras e intelectuais do continente.
Talvez o mais relevante deles tenha sido Honorio Delgado, um psiquiatra peruano com quem estabeleceu uma estreita relação na década de 1920 (e a quem Freud descreveu como o “primeiro amigo estrangeiro”).
“Delgado veio de Arequipa, da classe alta peruana. Ele liderou descobertas e ensaios muito relevantes para a época, tornando-se um dos psiquiatras mais importantes do continente”, explica Mariano Ruperthuz, psicanalista da Universidade Andrés Bello do Chile.
Freud e Delgado trocaram cartas, artigos de jornais e presentes durante anos. O psiquiatra peruano, junto com a esposa alemã, chegou a visitar Freud várias vezes em Viena.
E, embora Delgado tenha posteriormente rejeitado a psicanálise, entre 1920 e 1930 ele foi muito ativo na expansão e na propagação das ideias de Freud por toda a América Latina. Tanto que ele escreveu a primeira biografia em espanhol do médico austríaco no Peru.
Freud também estabeleceu relações com ilustres médicos brasileiros, como Durval Marcondes, que falava alemão e traduziu algumas das pesquisas do psicanalista para o português. Marcondes foi um dos membros fundadores da Sociedade Brasileira de Psicanálise.
O cientista Gastão Pereira da Silva também se correspondeu com Freud e ajudou a difundir a psicanálise no Brasil. Ele chegou a dirigir um programa de rádio no Rio de Janeiro sobre a análise de sonhos.
Outros nomes —como os argentinos Jorge Thenon e Gregorio Bermann e o chileno Fernando de Allende Navarro— aparecem na lista dos que mantiveram algum tipo de relacionamento com o pai da psicanálise. Bermann foi visitá-lo em Viena, assim como Honório Delgado.
Na exposição em Londres há uma carta de Freud dirigida a Juan Marín, poeta, romancista e diplomata chileno, e ao ganhador do Prêmio Nobel de Literatura Pablo Neruda após o psicanalista ter recebido uma oferta de asilo em Santiago, na esteira da perseguição nazista.
Embora Freud nunca tenha aceitado tal convite, para os pesquisadores esta troca de cartas reflete, mais uma vez, a estreita ligação de Freud com o continente.
Relação ‘assimétrica’
Mesmo assim, Mariano Ben Plotkin explica que esses laços entre Freud e os intelectuais latino-americanos eram “assimétrico” e “desiguais”.
“Freud pouco se importava com o que diziam sobre a psicanálise. Isso pode ser percebido nas correspondências, onde não há discussões teóricas, mas, sim, gratidão e um interesse legítimo por aquele mundo”, ressalta.
“Freud aceitou desvios da psicanálise na América Latina que seriam completamente inaceitáveis na Europa. Porque para Freud essa região era uma terra de missão, uma prova de que a psicanálise havia chegado a lugares distantes e exóticos”, acrescenta o historiador.
Essa ampliação de suas teorias pela América Latina foi tremendamente importante para o médico austríaco, dizem os pesquisadores.
Prova disso foi seu estranho interesse em levar consigo 34 de seus 62 livros latino-americanos —muitos dos quais com dedicatórias— quando teve que fugir de Viena para Londres.
Como judeu não praticante e fundador da escola psicanalítica na Áustria, Freud era considerado inimigo pela Alemanha nazista. Os estudos dele foram queimados publicamente. A família toda do médico foi vítima de intensa perseguição.
Segundo Mariano Ben Plotkin, dos 34 livros latino-americanos que chegaram a Londres, “Freud não leu nenhum”. “Metade está escrita em português, e ele não lia português. Então alguém se pergunta: por que ele se deu ao trabalho de carregar consigo livros que nunca leu e nunca leria na vida? Eles deveriam mostrar à posteridade que a psicanálise havia chegado a países exóticos”, afirma.
O psicanalista também guardou antiguidades da América Central e do Sul. Embora não se saiba quando ou como adquiriu estes objetos, acredita-se que esses objetos possam ser presentes, ou foram comprados em antiquários europeus.
Em exposição em sua casa em Londres, há uma pequena estátua de terracota de um homem ajoelhado que vem de Nayarit, no México. Além disso, existe uma embarcação Moche com um colar do Peru que os pesquisadores acreditam ter sido presenteado por Honório Delgado.
Para Jamie Ruers, curador da exposição Freud e a América Latina, essa foi mais uma das coisas que fascinaram o médico sobre o continente.
“Se olharmos para as antiguidades de Freud, ele sempre foi fascinado pelas civilizações do passado. A maioria dos objetos de sua coleção são da Grécia Antiga, Roma, Egito. Acho que a ideia de aprender sobre culturas e civilizações antigas incríveis sempre o fascinou”, disse ele. “E Freud via a América Latina como um lugar exótico, sem dúvida.”
A influência de Freud na região
Tudo o que foi dito talvez explique por que as ideias de Freud foram tão bem recebidas na América Latina, a tal ponto que hoje cidades como Buenos Aires abrigam o maior número de psicanalistas do mundo.
“Quando se pensa em psicanálise, lugares como Viena, Paris, Londres ou Nova York vêm à mente. Mas uma nova pesquisa [divulgada com a exposição de Londres] desafia isso, porque há outro lugar no mundo onde ela foi realmente adotada: a América Latina”, diz Jamie Ruers.
Isto se reflete não apenas no grande número de médicos do continente que seguiram os passos de Freud —e divulgaram seus estudos— mas também na forma como essas ideias permearam a cultura popular.
Por exemplo, na Buenos Aires de 1930, foi criada uma seção especial na revista feminina Idilio chamada “A psicanálise vai te ajudar”, que analisava e ilustrava os sonhos de leitores.
O psicólogo italiano Gino Germani esteve por trás do projeto. Antes da morte do especialista, Mariano Ben Plotkin conversou com ele. “Perguntei por que ele pensava em fazer aquela seção sobre psicanálise. E ele me respondeu: ‘Porque ele estava vendendo.’ Nada mais que isso”, diz Plotkin.
O mesmo aconteceu com uma coleção do poeta e escritor peruano Alberto Hidalgo, por meio da qual ele divulgou a obra de Freud.
“A coleção foi extremamente popular, abordando temas como a histeria feminina ou a origem do sexo. Foi publicado primeiro na Argentina e depois em outros países da América Latina, e chegou a ser traduzida para o português”, diz Plotkin.
Para o historiador, a psicanálise atraiu tanto os latino-americanos porque lhes permitiu ver “que havia a possibilidade de compreender o mundo de outro ponto de vista”. Esse “outro ponto de vista” continua, sem dúvida, a impactar muitos latino-americanos até hoje.
E, 84 anos após sua morte, Freud está presente em uma região que nunca visitou pessoalmente, mas que é atormentada por traumas e sonhos como aquele método que o psicanalista criou —para ouvir os primeiros e interpretar os segundos.
Este texto foi publicado originalmente aqui.