O concentrado de tensões em Victoria Ocampo – EERBONUS
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O concentrado de tensões em Victoria Ocampo

“Victoria Ocampo – concentrado de tensões”, lançamento da brava Editora Coragem, de Porto Alegre, é o título deste belo livro escrito por Karina de Castilhos Lucena, professora de literatura hispano-americana e de tradução do espanhol na Ufrgs. O volume reúne dez textos publicados originalmente na revista digital Parêntese, entre junho e setembro de 2023 – revisados e ampliados para a edição em livro –, e compõem um perfil desta figura fascinante que foi a argentina Victoria Ocampo.


Herdeira de uma das grandes fortunas de seu país, a mais velha de seis irmãs, nascida em 1890, Victoria Ocampo decidiu, aos vinte e poucos anos, que não iria cumprir à risca o papel normalmente destinado às mulheres de sua classe social. Resolveu aproveitar o dinheiro da família e tudo que ele já havia lhe proporcionado – uma educação refinada (em inglês e francês) e viagens constantes à Europa, entre outros privilégios – e empregar esse enorme capital (econômico, social e simbólico) em atividades que realmente eram de seu interesse, e não necessariamente da oligarquia da qual provinha. Em 1931, fundou a hoje mítica revista Sur, na qual iria se encarregar de divulgar as novidades (não só) literárias das vanguardas europeias, assessorada por intelectuais como Jorge Luis Borges, Pedro Henríquez Ureña, Oliverio Girondo e muitos outros. A revista durou até 1992, anos depois da morte de Victoria, em 1979, e já tinha dado origem, em 1933, à editora de mesmo nome, que continua em atividade (e que também está vinculada à fundação, em 1939, da Editorial Sudamericana, uma das mais importantes editoras argentinas, atualmente pertencente ao grupo editorial Penguin Random House).


Pode-se dizer – e Karina Lucena o diz com todas as letras – que a revista e a editora Sur “são os grandes projetos assinados por Victoria Ocampo”. Mas a autora também se encarrega de dizer que essa foi apenas uma (duas, no caso) das muitas facetas que a sua perfilada apresentava. Incentivadora das artes em geral, Victoria também soube dedicar sua atenção (e seu dinheiro) à arquitetura, por exemplo, assunto tratado no sétimo capítulo do livro. Antes disso, porém, capítulo a capítulo, Karina vai nos apresentar Victoria Ocampo como mecenas da literatura, como incentivadora da tradução (e tradutora ela mesma), como escritora, como correspondente de outras escritoras e escritores (Virginia Woolf e Albert Camus, para ficarmos com os mais conhecidos), como viajante, como cronista, enfim, como “polímata”, essa palavrinha mágica que bem pode definir sua atuação multifacetada, “mais diretamente relacionada à literatura, embora também tenha incursionado por música e teatro”, nas palavras da autora.


Os últimos capítulos do livro estão dedicados a dois assuntos importantíssimos, que não poderiam ficar de fora do perfil biográfico de uma figura como Victoria Ocampo: o feminismo e a política. No oitavo capítulo, Karina trata da atuação de Victoria como feminista, lembrando-nos que ela “passou a vida sendo a primeira e única mulher em ambientes agressivamente masculinos”, e que isso não deve ter sido fácil (como, de fato, não foi); lembra-nos também que Victoria, como mulher pública, mesmo a partir de um lugar social privilegiado, “usou suas vantagens para abrir caminho a outras mulheres que também não se resignavam à vida doméstica”. No nono capítulo, Karina trata da espinhosa questão de Victoria Ocampo como uma antiperonista convicta (que chegou a passar “vinte e sete dias presa / aos sessenta e três anos de idade / cidadã de alta periculosidade”, como se pode ler no poema que abre o livro) e de sua inevitável comparação com a outra grande figura feminina da Argentina daqueles tempos: Evita Perón, por supuesto. Nessa altura a autora nos brinda com a deliciosa tradução de um trecho de uma peça da dramaturga Mónica Ottino, em que se dramatiza o encontro entre Victoria e Evita num texto “que tenta fugir das versões caricaturais que a opinião pública construiu para ambas”.


Karina Lucena trata de cada uma das facetas de Victoria Ocampo com o rigor e a sensibilidade que caracterizam seu trabalho acadêmico desde sempre, consultando as melhores fontes do país natal da sua querida “Vicky” – escritoras e pesquisadoras como Beatriz Sarlo, María Esther Vázquez, María Teresa Gramuglio, Sylvia Molloy, Patricia Willson e Irene Chikiar Bauer (cito os nomes elencados à página 22 do livro), gente que se dedicou a estudar e a entender a vida e a obra desta figura excepcional com a mesma paixão com que Karina o faz. E o melhor de tudo é que o livro está escrito em linguagem acessível, repleto de humor, e cheio de observações interessantes, provando mais uma vez que é possível estudar um assunto em profundidade e ainda assim produzir um texto que dá gosto de ler.

Faltou dizer que o último capítulo do livro é aquele em que Karina Lucena explicita sua filiação benjaminiana (muito chique isso), ao explicar, afinal de contas, porque é que Victoria Ocampo pode ser considerada um concentrado de tensões, “uma força que, estudada no detalhe, permite compreender para além dela, uma força irradiadora”. Ao fim e ao cabo, a atuação de Victoria Ocampo no campo cultural argentino ao longo de cinco décadas cruciais nos ajuda a compreender algumas questões-chave relacionadas à cultura de seu país – entre outras, a emergência de Buenos Aires como capital cosmopolita e o influxo migratório como componente inescapável do imaginário nacional – e nos instiga a pensar nas semelhanças e diferenças que esse processo apresenta em relação àquele que ocorreu no Brasil na mesma época. Já estava mais do que na hora de conhecermos melhor a vida e a obra de uma figura tão importante da cultura latino-americana quanto Victoria Ocampo, e só podemos agradecer à Karina por esse mergulho apaixonado em seu objeto de estudo, que ela soube transformar num livro muy hermoso, agora à nossa disposição.

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