O estado de Nova York deu início a um esforço para enfim abordar a história da escravidão e do racismo ao estabelecer aquela que é a terceira força-tarefa dos Estados Unidos para avaliar reparações para enfrentar o legado da injustiça racial.
A governadora Kathy Hochul assinou na última semana um projeto de lei que atribui a uma comissão a tarefa de estudar não apenas a história da escravidão, proibida em Nova York em 1827, mas seus efeitos subsequentes na discriminação habitacional, no policiamento, na desigualdade de renda e no encarceramento em massa.
Nova York se junta, assim, aos estados da Califórnia e de Illinois na vanguarda dos esforços de reparações em território americano.
É muito cedo para dizer que tipo de restituição, em dinheiro ou não, a comissão recomendará para os descendentes de pessoas escravizadas —ou mesmo se fará essa recomendação.
Na Califórnia, um déficit orçamentário de vários bilhões de dólares ameaça atrapalhar o projeto de reparações, demonstrando a distância entre os objetivos do estado e a sua realidade fiscal.
“Eu sei que a palavra ‘reparações’ traz muitas ideias conflitantes para as pessoas”, disse Hochul no último dia 19 antes de assinar o projeto de lei. “Muitas pessoas resistem quando ouvem isso, sem realmente pensar no que significa ou por que precisamos falar sobre isso.”
“Hoje, desafio todos os nova-iorquinos a serem patriotas e rejeitarem —e não desculparem— nosso papel em se beneficiar da instituição da escravidão”, seguiu a democrata.
Uma força-tarefa de nove membros nomeada pela governadora e pelo Legislativo estadual produzirá um relatório com recomendações não vinculativas para corrigir séculos de discriminação. Legisladores poderiam então aprovar leis para implementá-las.
A comissão da Califórnia aprovou relatório em maio que recomendava um amplo programa estadual de reparações, bem como um pedido de desculpas formal aos milhões de residentes negros do estado. Os pagamentos, que poderiam chegar a mais de US$ 1,2 milhão (R$ 5,8 mi) por pessoa, custariam bilhões de dólares em um momento em que o estado enfrenta desafios fiscais, incluindo um déficit de receita de US$ 68 bilhões (R$ 330 bi).
Agora cabe aos legisladores estaduais e ao governador Gavin Newsom concordar com qualquer dinheiro a ser pago. Até agora, eles não aprovaram nenhuma lei.
Essa comissão foi além da escravidão e buscou colocar um preço nos efeitos do racismo sistêmico no que se refere a prisões por drogas, discriminação habitacional e desapropriações, bem como diferenças na expectativa de vida. As reparações na Califórnia se aplicariam apenas a residentes descendentes de pessoas escravizadas ou de afro-americanos livres que viveram nos EUA antes do século 20.
Em 2021, Evanston, em Chicago, tornou-se a primeira cidade dos EUA a conceder reparações na forma de subsídios habitacionais de até US$ 25 mil (R$ 121 mil). Até agosto, a cidade havia distribuído pouco mais de US$ 1 milhão (R$ 4,8 mi). O trabalho da comissão de reparações de Illinois está em andamento.
Em San Francisco, uma força-tarefa separada de 15 membros emitiu uma série de 111 recomendações e uma das propostas de restituição mais ambiciosas: um pagamento único de US$ 5 milhões (R$ 24 mi) para qualquer pessoa elegível.
Mas as limitações orçamentárias e a divisão política da cidade destacam o desafio político que os projetos de reparações enfrentam: os pagamentos propostos poderiam chegar a mais de US$ 100 bilhões (R$ 485 bi), ou cerca de sete vezes o orçamento anual de San Francisco.
A prefeita da cidade, London Breed, que é negra, não se comprometeu com reparações em dinheiro, e seu escritório indicou que o governo federal está mais apto a lidar com reparações.
Nova York tem problemas orçamentários semelhantes. Após dois anos de orçamentos estaduais recordes após um influxo de ajuda federal durante a pandemia, autoridades estaduais agora projetam um déficit orçamentário de US$ 4,3 bilhões (R$ 20,9 bi) para o ano fiscal de 2024.
Cortes podem estar no horizonte, renovando os apelos de legisladores de esquerda para aumentar os impostos sobre os ricos para cobrir as lacunas orçamentárias, uma medida à qual Hochul se opõe.
Ela pareceu reconhecer as difíceis negociações pela frente, admitindo que tinha preocupações com o projeto de lei no início.
A governadora também reconheceu os riscos políticos de entrar em uma conversa sobre injustiças históricas, embora tenha concluído que se opor ao racismo significaria “mais do que dar às pessoas um simples pedido de desculpas 150 anos depois”.
Antes da independência americana, havia mais africanos escravizados na cidade de Nova York do que em qualquer outra cidade dos EUA, exceto Charleston, na Carolina do Sul, e a população de africanos escravizados representava 20% da população estadual.
O líder da minoria republicana no Senado estadual, Robert Ortt, disse que Nova York já pagou sua dívida pela escravidão com o “sangue e vidas” dos americanos durante a Guerra Civil. “Uma comissão para considerar reparações é inviável”, disse ele em comunicado.
“Como vimos na Califórnia, acredito que as recomendações desta comissão serão irrealistas, terão um custo astronômico para todos os nova-iorquinos e só irão dividir ainda mais nosso estado.”
A assinatura do projeto de lei contou com a presença de diversos líderes políticos negros do estado, incluindo os patrocinadores do projeto no Senado, bem como o presidente da Câmara, Carl Heastie, e a líder da maioria no Senado, Andrea Stewart-Cousins.
O reverendo Al Sharpton agradeceu a Hochul por ter a “audácia e coragem” de apoiar a proposta, chamando a assinatura de “o início de um processo para reparar os danos causados”. “Você não pode se curar a menos que lide com as feridas”, disse ele. “E este projeto de lei formará uma comissão para curar as feridas.”
Agora que o projeto foi assinado, Hochul e os líderes do Senado e da Câmara nomearão cada um três membros para a força-tarefa. O grupo terá um ano a partir da data de sua primeira reunião para produzir um relatório de suas descobertas e recomendações.