Com o número de súbitos especialistas em Oriente Médio surgidos nos últimos dez dias, tenho me desviado do assunto por pura covardia. Sinto medo de descobrir, entre amigos ou entre aqueles que admiro, quem mais vai se revelar capaz de desprezar a humanidade de palestinos ou israelenses.
Nova York abriga a maior população judaica do mundo fora de Israel –1,6 milhão. Há uma linha direta entre a crueldade niilista regurgitada contra judeus ou palestinos e a dieta contemporânea de informação.
O truísmo “toda a política é local” atravessou a história americana no século 20. Era difícil se eleger governador ou presidente sem experiência em política municipal. Com a destruição da imprensa regional nos Estados Unidos e a dominância de um punhado de grupos de mídia digital, neste milênio toda a política é nacional.
Apenas um quinto dos nova-iorquinos registrados para votar compareceram às urnas para eleger Eric Adams, um sujeito escuso, tosco e um dos menos transparentes prefeitos da história recente da cidade. A progressiva erradicação da agenda política local, o desconhecimento sobre o outro que toma o mesmo metrô para trabalhar chegou à apoteose com o trumpismo.
Semianalfabetos brancos em enclaves rurais próximos do Canadá não cobram melhor assistência médica, mas se revoltam contra uma suposta invasão de centro-americanos que nunca chegarão perto deles. Legislaturas de pequenas cidades castigadas pela decadência industrial se consomem em discussões sobre banir livros que não leram e em perseguir pessoas trans que jamais encontraram. Moradores de áreas seguras, que nem trancam a porta de casa à noite, tornam-se coléricos defensores da violência policial depois de assistir a um protesto do Black Lives Matter na Fox News.
É difícil articular clareza moral sobre conflitos distantes sem a educação da experiência geográfica de engajamento com problemas à nossa volta. Na tela do celular e na rede social, toda tragédia da guerra pode ser consumida para gerar indignação recreativa.
O trumpismo e sua imitação brasileira se abastecem desta alienação. Na semana passada, Donald Trump fez um comício em New Hampshire, um estado 90% branco e com uma das mais robustas economias do país. Uma seleção de depoimentos de eleitores do ex-presidente gravada antes do comício e exibida num programa de comédia dá uma medida da seriedade da ignorância e da infantilidade desse culto.
Um homem enrolado numa bandeira disse que o governo Biden é responsável pela inflação e reclamou do preço do leite, para, em seguida, admitir que torrou US$ 2.000 em mercadorias vendidas pela campanha de Trump. Um militar veterano que professava sua adoração por Trump com a clareza de um zumbi defendeu o ex-presidente por ter sugerido casualmente que o recém-aposentado chefe do Estado Maior das Forças Armadas, o general Mark Milley, devia ser executado por traição. Um homem de meia-idade e modos comedidos disse que o comício favorito a que compareceu foi o do 6 de janeiro de 2021, seguido da invasão do Capitólio que ele descreveu sem hesitação como promovida pelo FBI.
A expressão “névoa da guerra”, cunhada no século 19, referia-se à incerteza dos conflitos armados. Mas as guerras do presente encaram outro desafio, o da neblina cognitiva abraçada por tantos em tempos de paz.
LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.