Se o presidente Joe Biden e a vice-presidente Kamala Harris precisavam de algum lembrete de que Binyamin Netanyahu não é amigo deles, não é amigo dos Estados Unidos e, mais vergonhosamente, não é amigo dos reféns israelenses na Faixa de Gaza, o assassinato recente de seis almas pelo Hamas enquanto o premiê arrastava as negociações deveria deixar isso claro.
Netanyahu tem um único interesse —sua própria sobrevivência política no curto prazo. Mesmo que isso prejudique a sobrevivência de Israel no longo prazo.
Senhora vice-presidente, não tenha dúvidas de que isso o levará a fazer coisas nos próximos dois meses que têm potencial para prejudicar seriamente suas chances de vencer as eleições e fortalecer Donald Trump. Tema.
Enquanto isso, senhor presidente, por favor me diga que Netanyahu não o enganou. Você falou com ele diversas vezes, e cada uma dessas conversas foi seguida por uma previsão otimista da iminência de um cessar-fogo em Gaza.
Só que o premiê sempre diz uma coisa diferente para os apoiadores dele.
Netanyahu é uma das razões pelas quais criei essa regra sobre a cobertura do Oriente Médio. Em Washington, as autoridades dizem a verdade em particular e mentem em público. No Oriente Médio, elas mentem para você em particular e dizem a verdade em público.
Nunca confie no que eles dizem a você em particular —especialmente Bibi, como Netanyahu é conhecido. Ouça apenas o que eles dizem em público, para o seu próprio povo, em seus idiomas nativos.
Em suas ligações, Netanyahu tem dito, em inglês, que tem interesse em um cessar-fogo e num acordo de libertação de reféns, e que suas decisões estão levando em conta os elementos necessários para o que eu chamo de Doutrina Biden. Mas assim que ele desliga, diz em hebraico coisas à sua base que contradizem expressamente a Doutrina Biden, pois elas ameaçam a Doutrina Bibi.
Mas o que são essas doutrinas? E por que elas importam?
A administração Biden construiu um conjunto impressionante de alianças regionais. São coalizões de natureza econômica e militar projetadas para conter a Rússia na Europa, a China no Pacífico e isolar o Irã no Oriente Médio.
Uma pedra angular de todas essas alianças —destinada a conectar a Ásia, o Oriente Médio e a Europa— era a proposta de aliança de defesa de Biden com a Arábia Saudita.
A chave para fazer esse acordo passar pelo Congresso seria os sauditas concordarem em normalizar as relações com Israel. E a chave para levá-los a fazer isso seria Netanyahu concordar em debater —e só debater— a possibilidade de uma solução de dois Estados com os palestinos.
Desde o início da guerra entre Israel e o Hamas, em outubro do ano passado, a equipe de Biden tem tentado, sabiamente, mesclar a Doutrina Biden com a obtenção de uma trégua em Gaza e um acordo de reféns.
Faz isso enfatizando as vantagens significativas dela para Israel e para os EUA: ela poderia levar a um cessar-fogo permanente em Gaza, trazer os reféns de volta e dar um descanso muito necessário ao exausto Exército israelense e à força de reserva, já que uma pausa no conflito quase certamente também compeliria o Hezbollah a suspender os disparos do Líbano.
Se Israel então concordasse a iniciar uma conversa com a Autoridade Nacional Palestina sobre uma solução de dois Estados, isso pavimentaria o caminho para a normalização das relações entre Tel Aviv e a Arábia Saudita e criaria condições para os Emirados Árabes Unidos, Marrocos e Egito enviarem tropas de paz para Gaza em parceria com uma Autoridade Palestina atualizada.
Desse modo, Israel não precisaria de uma ocupação permanente lá, e o Hamas seria substituído por um governo palestino legítimo e moderado.
O que Biden quer mostrar é que a segurança de Israel hoje precisa ser vista em um contexto muito mais amplo do que apenas quem patrulha a fronteira de Gaza.
Mas a Doutrina Biden esbarrou diretamente na Doutrina Bibi, que tem como objetivo fazer todo o possível para evitar qualquer processo de negociação com os palestinos capaz de forçar a uma mudança de diretriz em relação à ocupação da Cisjordânia, o que romperia a aliança política entre Netanyahu e a ultradireita israelense.
Assim, Bibi se certificou que os palestinos continuariam divididos. Ele garantiu que o Hamas seria um governante viável para Gaza, permitindo que o Qatar enviasse mais de US$ 1 bilhão ao grupo terrorista palestino para gastos com ajuda humanitária, combustível e salários administrativos de 2012 a 2018.
Ao mesmo tempo, fez de tudo para desacreditar e humilhar a Autoridade Nacional Palestina e seu presidente, Mahmoud Abbas, que reconheceu Israel, abraçou os acordos de Oslo e se associou aos serviços de segurança dos israelenses para tentar manter a paz na Cisjordânia por quase 30 anos.
A doutrina de sobrevivência de Netanyahu tornou-se ainda mais importante depois que ele foi acusado em 2019 por fraude, suborno e quebra de confiança. Agora, ele deve permanecer no poder para evitar a prisão se for condenado (talvez isso soe familiar para leitores dos EUA).
Quando Bibi venceu a reeleição por uma margem mínima em 2022, ele estava pronto para se aliar ao que há de pior na política israelense e formar uma coalizão que o manteria no poder. Estou falando de um grupo de supremacistas judeus radicais que um ex-chefe do Mossad de Israel chamou de “racistas horríveis”, “muito piores” que o Ku Klux Klan.
Eles concordaram em deixar Netanyahu ser primeiro-ministro, desde que ele mantivesse o controle militar israelense permanente sobre a Cisjordânia ocupada e, desde 7 de outubro de 2023, também sobre Gaza.
Eles disseram a Bibi que se ele concordasse com o acordo entre EUA, Arábia Saudita, Israel e a Autoridade Palestina —ou aceitasse um cessar-fogo imediato para o retorno de reféns israelenses e a libertação de prisioneiros palestinos em presídios israelenses—, eles derrubariam seu governo. Porque essas coisas prenunciariam a implementação da Doutrina Biden e uma eventual cessão de terras aos palestinos na Cisjordânia.
Netanyahu entendeu a mensagem. Ele declarou que encerraria a guerra em Gaza depois que Israel alcançasse a “vitória total”, mas nunca definiu exatamente o que isso significa e quem governaria Gaza depois.
Ao estabelecer um objetivo inatingível em Gaza —o Exército israelense está ocupando a Cisjordânia há 57 anos e, como demonstram os confrontos diários na área, não alcançou nenhuma “vitória total” sobre os militantes do Hamas lá—, Bibi preparou o terreno para que ele decida sozinho quando a guerra em Gaza acabará.
Isto é: quando isso atender às suas necessidades de sobrevivência política. Certamente, não hoje.
Netanyahu sabe que Kamala está em uma situação difícil. Se ele continuar a guerra em Gaza até a “vitória total”, com ainda mais vítimas civis, ele a forçará a criticá-lo publicamente e perder votos judeus ou a ficar calada e perder votos árabes e muçulmanos americanos no estado-chave de Michigan.
Como Kamala provavelmente terá dificuldade para escolher qualquer um dos lados, isso fará com que ela pareça fraca tanto diante dos judeus americanos quanto dos árabes americanos.
Eu não ficaria surpreso se Netanyahu realmente escalasse a situação em Gaza de agora até o dia da eleição para dificultar a vida dos democratas que concorrem ao cargo.
Netanyahu pode fazer isso porque ele quer que Trump vença, e quer dizer que o ajudou a vencer.
Se Trump vencer, não ficaria chocado se Bibi declarasse que sua “vitória total” em Gaza foi alcançada, concordasse com algum cessar-fogo para recuperar quaisquer reféns ainda vivos, murmurasse algumas palavras sobre a criação de um Estado palestino em um futuro distante para obter o acordo de normalização entre Arábia Saudita e Israel e mandasse seus aliados mais radicais de direita embora enquanto ele concorre à reeleição sem eles.
Sua plataforma: eu obtive a vitória total em Gaza e, com Trump, forjei uma abertura histórica entre Israel e a Arábia Saudita.
Netanyahu vence. Trump vence. Israel perde. Gaza ainda estará fervendo, é claro. Tropas israelenses ainda estarão ocupando o território. Israel será um pária ainda maior, com mais e mais cidadãos talentosos saindo para trabalhar no exterior. Mas Bibi terá mais um mandato —e isso é tudo o que importa.