Na Revolução dos Cravos, Lisboa teve Carnaval da liberdade – 20/04/2024 – Mundo – EERBONUS
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Na Revolução dos Cravos, Lisboa teve Carnaval da liberdade – 20/04/2024 – Mundo

Foi no dia 25 de abril de 1974, há 50 anos, em Lisboa, uma quinta-feira, muito fria para a primavera, e eu estava lá. Um dos maiores dias de quem o viveu e, talvez, o mais inesperado. Na própria véspera, à noite, eu passara casualmente pela porta da Pide, a monstruosa polícia política portuguesa, no Chiado. Ao ver dois ou três daqueles tipos à porta –atarracados, bigode grosso, suéter sob o casaco–, eu dissera à minha mulher: “Eles estão aqui há 48 anos e vão ficar mais 48”. Pois nunca me enganei tanto. À primeira hora da madrugada, jovens oficiais do Exército, à frente de tanques e tropas, saíram de seus quartéis, ocuparam as estações de rádio, o aeroporto e os bancos, neutralizaram as forças paramilitares e invadiram os palácios, ministérios e secretarias do governo. Contrariando as ordens que saíam dos megafones, o povo foi para as ruas. Cravos vermelhos tomaram a lapela dos casacos e a boca dos canhões –daí a Revolução dos Cravos, como seria chamada. Estava derrubada a ditadura mais longeva da Europa, instaurada em 1926 e, por 40 de seus 48 anos, comandada por um homem frio e inescrutável, um eunuco triste, de muitas convicções: António de Oliveira Salazar. Salazar morrera em 1970, mas seu fantasma continuava a assombrar o país. O 25 de Abril de 1974, em maiúsculas, como ficou famoso, evaporou-o.

No futuro, muitos diriam que “estavam em Lisboa no 25 de Abril”. Não discuto. Mas, entre os jornalistas brasileiros, eu era o único a estar lá –por acaso, mas estava. E não só naquele dia. Assim que as agências de notícias começaram a transmitir a queda da ditadura portuguesa, a imprensa mundial apressou-se em mandar gente para cobri-la. Mas, mesmo que conseguissem passagem para aquela noite, era inútil, porque os capitães e majores fecharam as fronteiras, para impedir que os ricaços ligados ao regime fugissem com o dinheiro. E, como ninguém saiu do país, ninguém também entrou, nem mesmo os líderes mais esperados pela população: o socialista Mario Soares e o comunista Álvaro Cunhal. Os dois, exilados havia anos, só entrariam em Lisboa no dia 28, quando se abriram as fronteiras –Cunhal, de avião, direto de Moscou, onde morava, e Soares, de trem, vindo de Paris, recebido por seus correligionários que foram esperá-lo na fronteira com a Espanha e, aos milhares, entraram em triunfo com ele em Lisboa.

Só naquele dia 28 chegaram os repórteres, alguns, da imprensa internacional, tão famosos quanto seus jornais ou revistas. Mas nenhum tinha mais condições de avaliar aquele momento do que os brasileiros, e não só pelas abjetas ligações de presidentes como Getulio Vargas e Juscelino Kubitschek com o ditador Salazar. Mas também porque o Brasil vivia a pior época de sua própria ditadura, a dos anos Médici. Pois ali estávamos nós, vendo ruir uma ditadura com trilha sonora em português.

A diferença entre as duas ditaduras estava no grau de censura. Tivesse a Revolução dos Cravos acontecido no Brasil, a imprensa portuguesa seria obrigada a escondê-la nas páginas internas e minimizar sua importância. Já a nossa imprensa, amordaçada sobre outros assuntos, pôde celebrar a libertação portuguesa com estardalhaço. A Manchete –de cuja Redação eu saíra em dezembro de 1973 para dirigir uma revista em Lisboa– foi para as bancas com 24 páginas de texto e fotografias, complementadas por um artigo meu, “O dia mais longo de Lisboa”, sem crédito. Eu não podia assinar –era editor-executivo da Seleções do Reader’s Digest, revista mensal que, por sua receita editorial, não tocaria no assunto. O 25 de Abril, no entanto, era importante demais para que eu me limitasse a segui-lo pela janela, ao lado de um vaso de alecrim. A Manchete tinha em Lisboa um escritório comercial, dirigido por minha amiga Maria do Amparo. Com um telefonema dela para meu ex-chefe Justino Martins no Rio, tornei-me uma espécie de correspondente secreto.

E, sem que ninguém soubesse, com acesso a informações de cocheira. Minha editora-assistente na Seleções, a carioca Margarida Sarda, era casada com um ativista social-democrata português, Jorge Sá Borges, que, a partir do 25 de Abril, foi tragado pelo novo regime e só aparecia em casa para trocar de roupa –passava dia e noite em reuniões com políticos e militares. Com razão: havia um país a ser feito e, mais urgente, uma ditadura a ser desfeita. Jorge não podia contar tudo a Margarida, mas o pouco que deixava escapar chegava magicamente aos meus ouvidos e ajudou a alimentar as matérias que, durante seis meses, passei a escrever toda semana para Manchete, sempre creditadas “Da Sucursal de Lisboa” –que não existia. Uma de que me orgulho foi a primeira na imprensa brasileira sobre o major Otelo Saraiva de Carvalho, o verdadeiro estrategista do movimento, mantido oculto enquanto foi possível.

É incrível como a reconstituição da história joga luz sobre fatos do passado que até então pareciam sem importância. O 25 de Abril foi uma operação estritamente militar e só aconteceu porque, mesmo sentindo algo no ar, nenhum civil sabia quando e se seria deflagrada. Anos depois, ao ler as memórias de Otelo, no livro “Alvorada em Abril”, fiquei sabendo que um dos points da conspiração entre os capitães e majores era o snack-bar do centro comercial Apolo 70, nas noites de sábado. O Apolo 70 tinha também um cinema com uma programação de clássicos nos sábados à meia-noite, com um filme por semana, começando por um ciclo com os dez musicais da dupla Fred Astaire-Ginger Rogers. Fui a todos, claro, e, como chegava cedo, ia fazer hora tomando um uísque no snack-bar. Pois só então, ao ler Otelo, me dei conta de que, várias vezes naquelas dez semanas, eu podia estar na mesa vizinha à do grupo de rapazes de cabelo reco, como o de Otelo, que discutiam seus planos para derrubar o regime. Poderia até ter entreouvido o dia e hora da marcha dos tanques! Mas não aconteceu e foi melhor assim –de posse de uma informação, jornalistas não sossegam enquanto não as publicam.

Os primeiros dias pós-25 de Abril foram o Carnaval da liberdade, com passeatas diárias, bandeiras de Portugal, comícios em palanques improvisados, grupos cantando “Grândola, Vila Morena” (o hino da revolução), faixas estendidas de um prédio ao outro com palavras de ordem, flyers e panfletos atapetando o asfalto e, para meu espanto, milhares de jovens nas ruas –onde eles se escondiam antes? A cidade foi coberta por pichações, com destaque para as do MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado), grupo de inspiração maoísta e tão antissoviético que se dizia financiado pela CIA. Era também chamado de MR-Pum-Pum, por pregar a luta armada –naquela altura, não se sabia contra quem. O MR-Pum-Pum nunca deu um tiro, mas foi marcante por seus belíssimos murais em vermelho e amarelo cobrindo largas fachadas. Não é possível conter um povo que passou 48 anos sem vida, sem alegria e, de repente, se vê sem peias e meias, aberto ao mundo e aos olhos fascinados do estrangeiro.

Tudo era motivo para euforia. A foto de um agente da Pide rendido, de mãos atrás da cabeça, calças arriadas e cueca à vista, correu a cidade, desmoralizando a instituição. A polícia, antes tão temida, virou piada: “Se denuncias um pide, ganhas 100 escudos [a moeda portuguesa na época]. Se denuncias dois pides, ganhas 200 escudos. Se denuncias três pides, vais preso por conhecer pides demais.” Era um desafogo contra o que a Pide representava –dizia-se que tinha 20 mil “colaboradores” informais, nos escritórios, fábricas, cafés e até ao nosso lado no ônibus ou no bonde, espiando com o rabo do olho para saber o que estávamos lendo.

Daí outro grande momento ter sido a vigília na noite do dia 26 à porta dos presídios do Peniche e de Caxias, para assistir à saída das dezenas de presos políticos. Quando os primeiros despontaram das grades das fortalezas, a 1 minuto do dia 27, seus amigos e familiares se convenceram de que eram mesmo novos tempos. Naquela madrugada, com o calor humano fazendo esquecer o frio, ninguém se diria comunista, socialista ou social-democrata –todos eram apenas democratas. Mas a suspeita de que não era bem assim não demorou a surgir, quando os militares confiscaram os arquivos da Pide e os partidos começaram a disputar os fichários, já antevendo usá-los contra seus amigos de véspera e futuros adversários políticos.

Injustiças foram cometidas. Abriu-se a temporada de caça aos “fascistas”, arrastando tanto os que nunca esconderam sua ideologia quanto aqueles de quem se discordasse sobre o preço do bacalhau. O fado foi posto fora da lei, por seu caráter derrotista e resignado, como Salazar gostava. E Amalia Rodrigues, sua grande estrela e uma instituição mundial, foi publicamente hostilizada, acusada de relações com o regime deposto. Não se sabia que, enquanto aceitava formalmente as condecorações que o salazarismo lhe espetava, Amália contribuíra em dinheiro com o clandestino Partido Comunista e lutara em segredo pela libertação de amigos presos.

O espírito do 25 de Abril chegou ao apogeu no dia 1º de maio, data até então de comemoração proibida. Seu principal cenário foi o ex-Estádio Nacional, já rebatizado como Estádio 1º de Maio, em Alvalade, tomado por uma multidão. De repente, em meio à massa, ouviram-se grupos falando o português do Brasil. Eram os primeiros exilados brasileiros que chegavam, vindos da Suécia, Alemanha e outros países da Europa, e, claro, do ChileSalvador Allende caíra sete meses antes, o general Pinochet tocava o terror, e muitos não tinham para onde correr. Em Portugal, eles encontraram um refúgio irmão.

Naquele dia, as faixas desfraldadas no estádio só falavam na liberdade. Era ainda o que importava. As esquerdas, no entanto, não conseguem se entender –daí serem as esquerdas, no plural, enquanto a direita é uma só–, e suas facções logo começaram a brigar. Antigos aliados se juraram de morte. A tão ansiada unidade se dissolveu. As correntes em luta já estavam começando a contar as armas e, com o país às portas de uma guerra civil, militares mais adultos e ponderados intervieram e deram um basta àqueles arroubos juvenis. Era o fim da Revolução dos Cravos, no dia 28 de novembro de 1975. Mas Portugal não voltou a ser o país dos mortos-vivos, dos homens de cinza e mulheres de preto, sem jovens nas ruas, sangrado pelo atraso, pelo analfabetismo e pela guerra colonial, anterior ao 25 de Abril. Instalou-se um civilizado regime de centro que, com eleições livres e alternâncias razoáveis, manteve o poder pelas décadas seguintes, gerando estabilidade, dinamismo e progresso.

Não fiquei para ver o fim da festa. Como decidira desde o começo, eu passaria no máximo três anos em Portugal. Comi o último lombinho com amêijoas no restaurante Ribadouro e voltei para o Rio em agosto de 1975. Mas, no dia 25 de abril de 1999 –os 25 anos do 25 de Abril–, lá estava eu mais uma vez em Lisboa e, como sempre, por acaso. Daquela vez, não havia festa. Para a maioria dos portugueses, os cravos não passavam agora de uma murcha lembrança –a liberdade era dada de barato, o povo habituara-se a votar, o país seguia firme e forte. Mas, até por isso, pensei eu, por que não comemorar?

De súbito, uma tímida passeata despontou na avenida da Liberdade. Juntei-me a ela e marchei ao lado de seus poucos participantes, todos de idade avançada. Eram os que haviam sobrevivido aos rancores políticos dos primeiros anos e sabiam o que aquela data de 1974 significara.

Hoje, nos 50 anos do 25 de Abril, é muito diferente. Os cravos já não pertencem à vida real, mas aos livros de história. Uma geração inteira, ao ouvir falar deles por seus pais ou avós, quer celebrá-los. As livrarias estão abarrotadas de livros a respeito, preveem-se incontáveis debates e haverá manifestações públicas. Nada será suficiente para fazer justiça ao que aconteceu naquele dia.

Pois, espantosamente, em 2024 põe a cabeça de fora o que se julgava expurgado da vida portuguesa: uma extrema-direita atuante, hidrófoba, nostálgica de um país que não conheceu e nunca existiu, e movida a fake news e a ódio, à moda de Bolsonaro, Trump e –quem diria– Salazar. Afinal, ele não fora evaporado.

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