Angela Merkel, primeira-ministra da Alemanha de 2005 a 2021, expressou preocupação com o segundo mandato de Donald Trump nos Estados Unidos, particularmente com a presença de Elon Musk no gabinete.
Em entrevista à revista alemã Der Spiegel, Merkel chama a atenção para o fato de Musk possuir a maioria dos satélites em órbita.
“Se uma pessoa como ele é dona de 60% de todos os satélites em órbita no espaço, então isso deve ser uma grande preocupação para nós, juntamente com as questões políticas. A política deve determinar o equilíbrio social entre os poderosos e os cidadãos comuns”, afirmou ela.
Merkel, que estava em seu primeiro mandato à frente da Alemanha durante a crise financeira de 2008, lembrou que “a esfera política era a autoridade final que podia resolver as coisas” em meio à crise dos mercados. “Se essa autoridade final for fortemente influenciada por empresas, seja por meio do poder do capital ou de capacidades tecnológicas, então isso representa um desafio sem precedentes para todos nós.”
Ela disse ainda que um dos critérios que distinguem as sociedades livres é a existência de controles claros sobre o poder de corporações. “Em uma democracia, a política nunca é impotente contra as empresas.”
A alemã lança na semana que vem um livro de memórias (“Liberdade: Memórias 1954-2021”, ou “Freiheit: Erinnerungen 1954 – 2021”, em alemão) no qual reconta sua vida, carreira política e relação com líderes que, hoje, ainda dão as cartas em um cenário global muito diferente do que o existente até 2021.
Um dos episódios descritos por Merkel foi o famoso encontro com Donald Trump, pouco depois da posse do republicano, em 2017 —a alemã foi a Washington. O mundo observava os dois líderes sentados em frente a uma lareira apagada, aguardando de forma constrangedora e silenciosa que os fotógrafos fizessem seu trabalho.
Após ouvir os fotógrafos pedirem um aperto de mão, um pedido que Trump ignorou, Merkel tentou ela mesma. “Eles querem um aperto de mão”, disse ela em um tom baixo, mas audível para a imprensa a poucos metros de distância.
“Assim que disse isso, balancei a cabeça mentalmente para mim mesma”, escreveu Merkel, de acordo com trechos divulgados nesta semana pelo alemão Die Zeit. “Como pude esquecer que Trump sabia exatamente qual efeito queria alcançar?”
Quando o mundo ficou chocado com o voto do Reino Unido para deixar a União Europeia, a primeira eleição de Trump e a anexação da Crimeia pela Rússia, Merkel exalava um tipo de calma paciente e cerebral que era vista como o bastião de uma ordem mundial antiga e mais previsível.
Desde que deixou o cargo em 2021, as coisas mudaram drasticamente. A Rússia invadiu a Ucrânia, levando a Alemanha a se desvencilhar da importação de gás russo, mais barato. Absorvendo tanto a falta de energia a baixo custo quanto uma redução do mercado de exportação chinês, a economia alemã estagnou. As pontes, estradas e ferrovias do país, há muito negligenciadas, estão desmoronando. E a extrema direita cresce retirando dividendos eleitorais da política de migração acolhedora de Merkel durante seu mandato.
Tudo isso leva, hoje, a um descontentamento generalizado e a uma reavaliação do legado de Merkel.
O livro da ex-primeira-ministra, cuja publicação em alemão e inglês está prevista para terça-feira (26), é esperado como mais do que apenas uma fascinante visão em primeira pessoa da liderança de uma grande potência europeia. É também uma justificativa para as decisões que ela tomou e que contribuíram para levar a Alemanha e o resto da Europa a um lugar perigoso.
Nos trechos, Merkel escreve sobre sua juventude na Alemanha Oriental comunista, a política americana — ela queria que tanto Hillary Clinton como Kamala Harris vencessem —, o presidente russo, Vladimir Putin, e eventos que prenunciavam a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022.
Ela também é clara sobre suas opiniões sobre Trump.
“Ele julgava tudo da perspectiva do empresário do ramo imobiliário que havia sido antes de entrar na política”, escreve ela no livro, que foi concluído antes da reeleição do republicano. “Cada pedaço de terra só podia ser vendido uma vez, e se ele não o conseguisse, outra pessoa o faria. Era assim que ele via o mundo.”
Ao mesmo tempo, ela sentiu naquela reunião de março de 2017 que Trump queria que gostassem dele. “Nós conversamos em dois níveis diferentes. Trump em um nível emocional, eu em um nível factual”, escreve Merkel.
Ele não compartilhava sua convicção de que a cooperação poderia beneficiar a todos. “Ele acreditava que todos os países estavam em competição uns com os outros, em que o sucesso de um era o fracasso do outro”, escreve ela. “Ele não acreditava que a prosperidade de todos poderia ser aumentada através da cooperação.”
A alemã afirma ainda que Trump estava fascinado por Putin, o que depois ela entendeu ser uma tendência para além do russo. “Ele estava claramente muito fascinado com o presidente russo. Nos anos seguintes, tive a impressão de que era atraído por políticos com tendências autocráticas e ditatoriais.”
Merkel descarta Putin como “alguém que estava sempre de guarda para não ser tratado mal, e sempre pronto para distribuir punições, incluindo o uso de jogos de poder com um cachorro e fazer os outros esperarem” —uma referência ao episódio em que Putin levou um grande cão labrador preto a uma reunião em 2007 com Merkel, que tem medo de cães.
“Você poderia achar tudo isso infantil, repreensível. Poderia balançar a cabeça [desaprovando] isso”, ela escreve. “Mas isso não fez a Rússia desaparecer do mapa”, diz ela, que avalia que o país governado por Putin continua sendo “um fator geopolítico indispensável.”