Os últimos três meses foram uma odisseia, uma busca pela segurança que não existe em Gaza. Muhammed Ali e sua família tiveram que procurar novos alojamentos várias vezes –a casa deles, na Cidade de Gaza, foi destruída por ataques israelenses.
“Inicialmente, procuramos abrigo no hospital Al-Quds, que ficava perto de nossa antiga casa. Quando fomos informados [pelo Exército] que tínhamos que nos retirar do local, fomos para o campo de refugiados de Nuseirat [no centro da Faixa de Gaza]. Atualmente, estamos em Rafah“, diz Ali, em uma mensagem de texto no WhatsApp.
Três meses após Israel declarar guerra, o engenheiro civil de 35 anos não está preocupado apenas com a sobrevivência diária dele e de sua família, mas também com o futuro de Gaza.
Alguns políticos proeminentes e ministros do governo ultranacionalista do premiê Binyamin Netanyahu questionaram se a população de Gaza deveria ter permissão para voltar para casa.
“Esperamos que não ocorra o deslocamento forçado permanente, que a guerra termine e que as pessoas voltem para suas casas. Já basta o que já aconteceu; tudo deve chegar ao fim”, desabafa Ali.
Nem o gabinete de guerra, nem o gabinete de segurança ampliado de Israel adotaram ainda políticas oficiais sobre Gaza pós-guerra. A prioridade, no discurso político e público, continua sendo a “eliminação” do grupo radical Hamas, responsável pelos ataques terroristas de 7 de outubro, nos quais mais de 1.200 pessoas foram mortas, e a libertação dos mais de 130 reféns ainda mantidos, vivos ou mortos, na Faixa de Gaza. O Hamas é classificado como grupo terrorista por Israel, Estados Unidos e União Europeia.
Discurso inflamado
Políticos israelenses de ultradireita, como o ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, e o ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben Gvir, não escondem o fato de que preveem o futuro de Gaza sem a maioria de seus habitantes palestinos. Eles querem que o território da Faixa seja povoado por novos colonos israelenses.
“O que precisa ser feito em Gaza é incentivar a emigração”, disse Smotrich em uma entrevista recente à rádio do exército israelense. “Se houver 100 mil ou 200 mil árabes em Gaza e não 2 milhões de árabes, toda a discussão para o dia seguinte será completamente diferente.”
Em declarações separadas, Ben Gvir também propôs a emigração “voluntária” de centenas de milhares de pessoas da Faixa de Gaza. Outros membros do gabinete expressaram ideias semelhantes.
A mídia israelense noticiou supostas negociações com países terceiros que estariam dispostos a receber palestinos, incluindo República Democrática do Congo, Ruanda e Chade. Os três rejeitaram esses relatos. O porta-voz do governo da RDC, Patrick Muyaya, disse em uma declaração no X que “nunca houve qualquer forma de negociação, discussão ou iniciativa entre Kinshasa e Israel sobre a recepção de migrantes palestinos em solo congolês”.
Incitação crescente contra palestinos
O ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, rejeitou os planos de assentamento de seus parceiros de coalizão de direita. Ele garantiu que não haverá “nenhuma presença civil [israelense] em Gaza”, de acordo com um plano que ele apresentou há uma semana.
Pelo plano, que ainda teria que se tornar uma medida oficial, Gaza seria governada por entidades palestinas não especificadas, enquanto Israel manteria o controle de segurança. Israel retirou seus assentamentos de Gaza em 2005, mas tem controlado as fronteiras terrestres e marítimas, assim como o espaço aéreo, desde que o Hamas tomou o poder da Autoridade Nacional Palestina (ANP) ali em 2007. Na Cisjordânia, a ANP segue na liderança do governo.
Antes da primeira audiência na Corte Internacional de Justiça em Haia em uma ação apresentada contra Israel, Netanyahu disse que seu país “não tem intenção de ocupar permanentemente Gaza ou deslocar sua população civil”.
Os parceiros ultranacionalistas da coalizão são considerados importantes para sustentar o governo de Netanyahu. Entretanto, sua influência nas decisões estratégicas é questionável.
“Israel depende dos EUA provavelmente mais do que nunca. Isso se aplica tanto ao apoio diplomático no Conselho de Segurança da ONU quanto à segurança nacional de Israel”, disse Udi Sommer, professor de ciência política da Universidade de Tel Aviv.
“Portanto, se você quiser obter uma projeção razoavelmente boa do que é um cenário realista de pós-guerra, eu ouviria o que o secretário de Estado dos EUA tem a dizer, muito mais do que as declarações imprudentes feitas por elementos extremistas no governo.”
Outros, no entanto, questionaram o discurso público em Israel, que deixa pouco espaço para o destino da população de Gaza. Políticos e acadêmicos israelenses expressaram críticas ao crescente sentimento de incitação contra os palestinos em Gaza.
E agora há o caso na Corte de Haia lançado pela África do Sul, que está acusando Israel de genocídio em sua atual campanha em Gaza. As declarações controversas de autoridades e políticos israelenses foram incluídas na denúncia sul-africana.
Os EUA e outros países, incluindo a Alemanha, criticaram as declarações da ultradireita como “irresponsáveis e inflamatórias”.
Resistência externa
Durante sua última visita à região nesta semana, o secretário de Estado americano, Antony Blinken, enfatizou a importância de um acordo da ONU para avaliar as condições sob as quais seria possível que os palestinos voltassem para Gaza. “Assim que as condições permitirem, queremos que as pessoas possam voltar para suas casas”, disse.
A emigração forçada de palestinos também é inaceitável para os países árabes. O ditador egípcio, Abdel Fattah al-Sisi, deixou bem claro –como fez nas guerras anteriores em Gaza– que o país não tem planos de abrigar palestinos na região vizinha do Sinai egípcio.
A Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Médio (UNRWA) estima que 1,9 milhão de pessoas –cerca de 85% da população de Gaza– sejam consideradas deslocadas. Centenas de milhares estão atualmente buscando refúgio em Rafah, a cidade mais ao sul da Faixa, na fronteira com o Egito.
“A imensa destruição em Gaza –mais de 60% das casas foram destruídas ou danificadas– reforça a preocupação de que é questionável como um retorno para casa seria possível”, diz Mustafa Ibrahim, ativista de direitos humanos e analista político, por telefone, de Rafah.
“A recente declaração de Smotrich, denunciada pela Europa e pelos EUA, alinha-se com o conceito de deslocamento. Com um milhão e meio de palestinos amontoados em Rafah, isso simboliza a ideia de deslocamento, e é uma preocupação constante para os palestinos.”
Saída temporária de Gaza
“O deslocamento não é algo novo para os palestinos”, diz Ibrahim. Muitos palestinos ainda têm em mente o trauma de 1948, conhecido como nakba (catástrofe, em árabe).
Naquele ano, centenas de milhares de palestinos tiveram que fugir de suas casas ou foram expulsos durante a guerra árabe-israelense. Até hoje, eles não puderam retornar. Naquela época, muitos fugiram para Gaza. Cerca de 70% da população de lá é considerada refugiada e seus descendentes, de acordo com a UNRWA.
Como a maioria dos residentes de Gaza, essa não é a primeira vez que Amer Abdel Muti, 33, tem de viver em meio a um grande conflito. Morador de Jabalia, a nordeste da Cidade de Gaza, ele também teve que fugir várias vezes, primeiro para Khan Younis e recentemente para Rafah.
“Se os países ocidentais abrissem suas portas para nós durante a guerra e nos permitissem sair por um curto período de tempo, permitindo que voltássemos após um cessar-fogo, então eu sairia, porque minha vida é preciosa para mim”, diz por WhatsApp. “Mas se tivesse que sair para sempre, eu não sairia. Ficaria em meu país de origem.”