Em 2016, passeando por São Paulo, o escritor boliviano Gabriel Mamani Magne disse ter ficado surpreso ao se ver rodeado de sotaques, sons e cheiros muito familiares. Ele morava no Rio de Janeiro, onde fazia um mestrado em literatura, e já havia estado antes no Brasil como turista.
Mas a experiência de caminhar pela rua Coimbra e pela praça Kantuta, redutos de imigrantes bolivianos no bairro do Brás, foi totalmente diferente.
“Era uma mini-Bolívia. A Bolívia popular, operária, com tudo de bom do país, mas também tudo de ruim. Eu gostei dessa ideia de que a Bolívia se apropriou de um pedaço de São Paulo”, conta.
Surgiu ali a inspiração para “Seul, São Paulo”, vencedor do Prêmio Nacional de Romance da Bolívia —a mais importante premiação literária do país— em 2019 e que agora ganhou edição brasileira pela editora Todavia.
A história se passa principalmente nas cidades bolivianas de La Paz e de El Alto e é centrada na vida de dois adolescentes: Tayson Pacsi, brasileiro filho de bolivianos que emigraram para São Paulo para trabalhar em oficinas de costura, e seu primo, o narrador, que nunca saiu do país, mas é atraído pela vontade de migrar.
Com linguagem ácida e bem-humorada, o texto acompanha os personagens nas descobertas típicas da juventude —sexo, álcool, a indecisão sobre o futuro— enquanto provoca reflexões sobre relações de poder, xenofobia, racismo e formação de identidade.
De volta à Bolívia, Tayson, cuja infância foi “uma batalha constante entre a língua dos seus pais e a língua do seu passaporte”, precisa fazer o movimento contrário e se adaptar a uma terra onde nunca viveu e a um idioma que não domina.
A base para o personagem também veio do passeio pelo Brás, quando Mamani identificou, nas barracas de comida típica, filhos de imigrantes falando português sem sotaque estrangeiro.
“Eles pareciam bolivianos pela roupa, pelos rostos, mas falavam português perfeito. Nasceram no Brasil, foram à escola brasileira, mas a pele, o nome e o sobrenome são bolivianos. Essas pessoas estarão sempre na fronteira”, diz o escritor.
Boliviano demais para ser brasileiro e brasileiro demais para ser boliviano, Tayson constrói sua identidade em um contexto em que a maioria indígena também vem se reafirmando, após séculos de silenciamento.
“A Bolívia é um país que sempre está fugindo da sua origem, no qual as pessoas se amparam nessa ideia da mestiçagem. Eu sinto que a mestiçagem é uma desculpa para dizer: não sou branco, mas também não sou tão indígena”, diz Mamani.
Esse descolamento se manifesta na literatura do país, de tal maneira que “Seul, São Paulo” foi elogiado pela crítica por supostamente mostrar “uma outra Bolívia” — de personagens emergentes, que não são brancos, mas também não se encaixam no estereótipo do indígena miserável.
O autor não se sente confortável com esse rótulo. Se houver uma outra Bolívia, diz, é a da minoria branca privilegiada. “Isso reflete o pouco contato que as elites culturais tiveram com a realidade boliviana. Eu não inventei nada. O que está ali é a Bolívia popular, é como a maioria vive”, afirma.
A experiência de migrar, muito presente nas famílias bolivianas, tem papel central na obra. Além dos pais de Tayson, outros tios atravessaram as fronteiras com o Brasil, o Chile e a Argentina. Já o pai do narrador é retratado como um covarde que não teve coragem de sair do país e esconde o ressentimento com um patriotismo que as novas gerações não absorvem mais. “Perto deles, meu pai é um homem sem histórias”, diz o garoto.
A Seul do título se refere à relação ambivalente dos bolivianos com a Coreia do Sul. De um lado, está uma rivalidade antiga entre as duas comunidades de imigrantes em São Paulo, nascida da concorrência pelo mercado da costura e da moda. De outro, a paixão de Tayson pelo k-pop, que começa tímida e evolui até ele formar seu próprio grupo de dança do ritmo asiático.
Além de o k-pop ser, de fato, um sucesso entre a juventude boliviana e brasileira, Mamani quis trazer o assunto para o livro por seu interesse por “fenômenos culturais globais que rompem a hegemonia dos Estados Unidos e da Europa”.
Foi o que também o motivou a fazer aulas de português, em 2012, e a escolher o Brasil para suas pós-graduações. Formado em sociologia e direito, ele terminou o mestrado em 2018 e hoje cursa doutorado em letras na Universidade Federal de Goiás.
“Na América Latina, achamos que tudo o que importa vem de mais longe. Foi muito legal para mim saber que existe um mundo bem do lado da Bolívia com tanta cultura e tantas opções”, diz.
O desconhecimento, afirma, é recíproco. “Mesmo na universidade ou no campo intelectual, tem pessoas que não sabem onde fica a Bolívia, sendo que a gente está do lado, compartilhando a maior fronteira da América do Sul.”
Outra faceta dessa alienação —atravessada pelo racismo— é o conhecimento superficial que o brasileiro tem da migração boliviana, mesmo sendo a terceira nacionalidade mais comum entre os imigrantes registrados no Brasil, depois da venezuelana e da haitiana, e a que mais tem filhos no país.
“Todo mundo gosta de falar que o brasileiro é descendente de italianos, portugueses, japoneses. Pelas estatísticas, daria para dizer que o brasileiro é, em algum sentido, descendente de bolivianos. Mas você não vai escutar isso. Essa informação não é conveniente para um discurso que procura a branquitude de um país.”
Antes de “Seul, São Paulo”, Mamani escreveu livros infantis e contos, alguns deles premiados. Em 2021, lançou seu segundo romance, “El Rehén”, que deve ser lançado em 2025 em português, também pela Todavia.
Seu plano é continuar no Brasil, mas não sabe por quanto tempo. “Eu gosto de andar”, diz. “Gostaria de conhecer outros lugares, amar outra cultura, odiar outra cultura. O mundo é muito grande.”