Mão na consciência – EERBONUS
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Mão na consciência

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São 19h30 de uma quarta-feira. Cerca de 30 homens se reúnem de forma voluntária em uma videochamada e aguardam o início da primeira palestra. Pelas câmeras dos computadores e celulares, é possível observar a apreensão e a ansiedade estampadas no rosto dos participantes.

Cada um chegou à reunião de uma maneira: uns, aconselhados pelos advogados; outros, pela própria parceira ou indicados pela polícia. O perfil etário do grupo também é diverso: vai dos 20 aos 60 anos.

Os participantes ainda se distinguem pelo local que escolheram para acompanhar o programa. A maioria consegue assistir às palestras de casa, seja sentado na mesa da jantar, seja no sofá ou na cama. Outros ainda aproveitam o trânsito e participam do próprio carro. 

Entretanto, eles têm algo em comum: apresentavam comportamentos de potencial violento contra as mulheres. No geral, a expectativa deles é o julgamento e a condenação por ações e falas consideradas agressivas. Oo que encontram, porém, é um ambiente bem diferente.

O R7 acompanhou a jornada de um grupo que participou do programa Homem Sim, Consciente Também. Criado em 2015 pela delegada Renata Cruppi, da DDM (Delegacia de Defesa da Mulher) de Diadema, na Grande São Paulo, o projeto tem como objetivo a prevenção da violência doméstica a partir do acolhimento e do diálogo com os homens.

No total, são oito encontros com duração de aproximadamente uma hora e meia e com temas variados, como maus-tratos a animais domésticos e até mesmo economia familiar. Além das aulas, os participantes recebem assistência psicológica e jurídica.

Logo no início, a delegada esclarece que todas as informações compartilhadas pelos homens do grupo são sigilosas. Independentemente de eles terem ficha criminal, nada será compartilhado com o Ministério Público nem com o Tribunal de Justiça. Apesar de ser coordenado por Cruppi, o programa não tem relação com a Polícia Civil de São Paulo — ou seja, é executado de forma independente.

As explicações sobre o funcionamento do curso, contudo, não são o suficiente para tranquilizar os convidados no primeiro encontro. Muitos homens têm medida protetiva que foi solicitada por uma ex ou pela atual companheira e, consequentemente, trazem muitas dúvidas sobre essas ordens judiciais.

Uma das angústias que afligem os participantes, que são pais, é a convivência com os filhos. Mesmo que tenham medida protetiva ou outros problemas com a ex, eles não querem deixar de exercer a paternidade.

Em um mar de tantos homens desconfiados e na defensiva, a reportagem foi pega de surpresa por dois integrantes. Na primeira reunião, Carlos* contou aos colegas, de forma empolgada, que participava do programa pela terceira vez. Já Gabriel* agradeceu o acolhimento psicológico recebido antes do início das atividades.

A delegada Renata Cruppi conta que, ao longo dos anos, o Homem Sim, Consciente Também foi passando por transformações. Com a pandemia de Covid-19, o projeto precisou mudar o formato de presencial para online, o que possibilitou a adesão de mais pessoas.

“Muitos homens deixavam de participar por conta do tempo de deslocamento [até a DDM] e do horário. Na versão virtual, nós conseguimos fazer [o programa] no período noturno. Também conseguimos alcançar aqueles que trabalham com transporte, que são caminhoneiros, que estão em viagens de trabalho ou que estão no trânsito, voltando para casa”, explica a delegada.

Embora a adesão ao projeto não seja obrigatória, há regras a ser seguidas para a obtenção do certificado ao fim do programa. Todos devem manter as câmeras ligadas 100% do tempo, pois há uma psicóloga que acompanha o desenvolvimento e as mudanças no comportamento dos participantes ao longo das oito semanas.

Caso algum homem permaneça com a câmera desligada, sua participação no encontro não será contabilizada. Para concluir o programa, eles também precisam frequentar todas as palestras. Existe a tolerância de duas faltas, porém, posteriormente, é necessário repor o conteúdo perdido.

Reprodução/Arquivo Agência Brasil

O atendimento psicológico também pode ser realizado de forma presencial ou online, a depender da preferência e da disponibilidade do participante. Essa assistência pode começar antes do início do programa, informa a diretora do setor psicológico, Blenda Freitas.

“É necessário esse trabalho prévio. No primeiro dia, a gente brinca que está abrindo uma caixinha de Pandora, porque eles vão vir com vários olhares extremamente negativos. Então, a gente precisa mostrar e materializar que não estamos ali, por exemplo, para julgar”, enfatiza Freitas.

O Homem Sim, Consciente Também não é o primeiro projeto criado no país para combater a violência de gênero. Entretanto, o seu diferencial é atuar, justamente, no início do ciclo da violência doméstica e contar com a participação voluntária dos homens.

Qual é a importância de identificar a violência no início?

Para os especialistas ouvidos pela reportagem, quando o ciclo da violência doméstica alcança o ápice — que é o feminicídio —, isso significa que o Estado e a sociedade falharam. Por isso, o grande desafio é identificar os comportamentos agressivos no início, a tempo de interrompê-los e salvar vidas.

No último anuário do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), divulgado em julho deste ano, todos os índices de violência contra a mulher registraram aumento, com destaque para os casos de estupro, que bateram um recorde histórico — acendendo um alerta na sociedade brasileira.

Em 2022, pelo menos uma mulher foi estuprada a cada oito horas no país, segundo o levantamento do FBSP. Entretanto, os números estão longe de representar a realidade, pois esse tipo de crime apresenta um elevado índice de subnotificação. Estima-se que a quantidade de estupros pode ser até quatro vezes maior.

Betina Barros, pesquisadora do FBSP e mestre em sociologia pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), explica que, apesar da violência psicológica ser o início do ciclo, seus efeitos não devem ser subestimados.

“Às vezes, é muito mais difícil você se desvencilhar do sofrimento e do dano causado pela violência psicológica do que pelo dano causado pela violência física. Ela tem uma capacidade de trauma bem elevada”, afirma a pesquisadora.

Segundo Barros, a violência física é mais objetiva e deixa marcas evidentes nos corpos das vítimas. Por isso, é mais fácil de ser mensurada em comparação aos danos provocados pela psicológica — e, consequentemente, mais fácil de coletar a prova do crime para o registro do boletim de ocorrência.

Às vezes, é muito mais difícil se desvencilhar do sofrimento e do dano causado pela violência psicológica do que pelo dano causado pela violência física. Ela tem uma capacidade de trauma bem elevada
Betina Barros, pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

A subjetividade da violência psicológica ainda é um obstáculo para as mulheres e os próprios autores. É difícil identificar quais são os comportamentos e as ações violentas que podem se enquadrar como crimes. Cada situação vai depender do contexto e da relação entre as partes.

“Somente quando a gente entender e desmistificar essas pequenas violências  poderemos, talvez, avançar como sociedade. Não é o caminho esperar para fazer alguma coisa só quando já se chegou a uma lesão corporal. Temos que tratar isso muito antes”, complementa a pesquisadora do FBSP.

Origem da violência

Para Fábio Cruppi, sociólogo especialista em direitos humanos e um dos palestrantes do Homem Sim, Consciente Também, a divisão de papéis de gênero impactam negativamente o desenvolvimento dos homens — além, obviamente, do das mulheres.

De geração em geração, eles aprendem que devem ser os provedores do lar e são proibidos de demonstrar qualquer tipo de fraqueza. “Essa construção social muitas vezes os sobrecarrega. É difícil explicar para os homens que eles podem ter sentimentos, ser fracos e frágeis”, esclarece o sociólogo.

A dificuldade de se expressar e a pressão de ser o chefe de família são alguns dos elementos que levam à criação dessa cultura violenta. “Quando você não sabe lidar com aquilo que passa dentro de você, o extravasamento acontece de uma forma agressiva”, afirma Fábio.

A pesquisadora Betina Barros elenca outros fatores que colaboram para a construção desse cenário violento no país: altos índices de desemprego, crise econômica e alcoolismo — que apresentou um aumento preocupante durante a pandemia.

“Então, todo esse cenário em que o homem é desprovido da possibilidade de ser o provedor, de ser uma pessoa respeitada socialmente, atinge a masculinidade dele. Muitas vezes a válvula de escape é a violência, e a mulher é o elo mais frágil dessa relação”, explica Barros.

Apesar dos pequenos avanços ao longo dos últimos anos, existe, em geral, uma dificuldade do homem — especialmente de gerações anteriores — de compreender as mudanças nos papéis de gênero, principalmente no âmbito financeiro e doméstico, apontam os especialistas.

A maioria dos domicílios no Brasil já é chefiada por mulheres, segundo dados divulgados pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos). Em 2022, dos 75 milhões de lares, 50,8% tinham liderança feminina (38,1 milhões), enquanto as famílias com chefia masculina somaram 36,9 milhões.

Segundo Fábio Cruppi, geralmente o perfil dos participantes do Homem Sim, Consciente Também é da “geração de entremeios”. São homens estão vivenciando mudanças nos papéis de gênero e na divisão de tarefas domésticas. O que se torna um desafio no processo de desconstrução da violência contra a mulher.

Desafios e resistência

Henrique* é um dos participantes da turma do Homem Sim, Consciente Também que a reportagem acompanhou ao longo de oito semanas. Durante uma palestra, ele aproveitou para desabafar com os demais.

Antônio Facchinetti
Edu Garcia/R7

Henrique relatou que sofre sucessivas cobranças da companheira para ser o “macho alfa” e o provedor da família, o que provoca instabilidade no namoro e constantes discussões entre eles. Ele ainda contou que, no relacionamento anterior, a mulher era sustentada pelo marido, por isso ela esperava o mesmo comportamento dele.

Para a delegada Renata Cruppi, com o passar da resistência inicial, os participantes — a exemplo de Henrique — enxergam o programa como um espaço de escuta e de acolhimento para compartilhar desafios relacionados à figura do homem e para pedir ajuda jurídica e psicológica.

Foi o caso do montador Antonio Facchinetti, de 35 anos, que conversou com o R7. “Eu conheci o programa após me separar, quando estava na delegacia. Eu achei que ia ser um bicho de sete cabeças, mas não foi. Eu gostei muito do programa, mudou a minha vida”, relata.

Eu conheci o programa após me separar, quando estava na delegacia. Eu achei que ia ser um bicho de sete cabeças, mas não foi. Mudou a minha vida
Antonio Facchinetti, 35 anos, montador

Pai de uma adolescente de 12 anos, Antonio foi casado durante 11 anos. O matrimônio terminou de forma conturbada e violenta. “[Durante uma discussão] ela veio para cima de mim, e eu me defendi. Ela ficou com uns roxos, e eu com uns arranhões. Os vizinhos então chamaram a polícia”, relembra.

No dia, Antonio foi encaminhado à delegacia para o registro do boletim de ocorrência por violência doméstica, e uma medida protetiva contra ele também foi expedida. Posteriormente, um juiz recomendou a ele que participasse do Homem Sim, Consciente Também — um caminho alternativo à habitual punição.

Na época, conta, o montador estava depressivo com o fim do relacionamento e achou que “seria o fim do mundo” participar do curso. Entretanto, o resultado foi diferente. Hoje, Antonio mudou de comportamento, está mais aberto a conversar sobre seus sentimentos com outras pessoas e até passou a fazer terapia mensalmente.

Após a separação, Antonio e a ex-mulher optaram pela guarda compartilhada da filha. A jovem, então, escolheu morar com o pai, e a cada 15 dias visita a mãe. “Hoje, eu me cuido mais e tenho três focos: o meu emprego, o futuro da minha filha e eu”, diz o montador.

Apesar de ter aprendido a compartilhar mais seus sentimentos, Antonio se queixa da dificuldade de encontrar amigos para isso. “As conversas entre os homens são mais banais [em comparação com as das mulheres]. São mais sobre futebol e carro. No meu serviço, por exemplo, a gente conversa só sobre futebol, e cada um segue com a sua vida”, lamenta.

O segurança e bombeiro civil João Romualdo
Edu Garcia/R7

O segurança e bombeiro civil João Romualdo, outro participante do curso, também enxerga a mesma dificuldade de comunicação em seu ciclo de amizades. Ele conta que trabalhou durante sete anos em uma empresa, à noite — com turnos de 12 horas. “Eu não tinha com quem conversar. Quando eu chegava em casa, eu ia dormir. Depois, ia para academia treinar e já estava na hora de trabalhar de novo.”

Segundo João, ele estava dentro de uma “ostra”, fechado para conversas em razão do medo de ser julgado e de possíveis fofocas entre amigos. Ao participar do Homem Sim, Consciente Também, ele encontrou um espaço para “trocar ideia” e se abrir aos poucos com outras pessoas.

O bombeiro civil também foi convidado a participar do projeto por um juiz, depois de ter sido denunciado pela ex-namorada — com quem se relacionou por nove meses. “Fui incluído no programa, e é uma das coisas que eu tenho a agradecer. Se todo mal traz alguma consequência, essa foi excelente. Faz a gente respirar, sentir tratamento humano de verdade”, elogia.

João ainda reflete sobre a estrutura da sociedade atual: “A nossa geração veio, e tudo mudou. Não é mais o homem que manda, é meio a meio. E, em alguns casos, a mulher está mandando mais. Um homem com pouca visão se sente desfavorecido. O cara que era pai de família, hoje em dia, se sente mais mal visto, fraco na família e na sociedade.”

*A reportagem utilizou nomes fictícios para preservar a identidade dos entrevistados

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