Desde o início da guerra no Oriente Médio em 7 de outubro, líderes mundiais como o presidente Lula, o americano Joe Biden e o príncipe saudita Mohammed bin Salman vêm se posicionando a favor da retomada de negociações de paz para a criação de um Estado palestino ao lado do Estado de Israel.
A chamada solução de dois Estados, porém, é rejeitada pela maioria dos habitantes da região em ambos os lados. É o que indica uma pesquisa realizada pela Universidade de Tel Aviv em parceria com o Centro Palestino para Estudo de Política e Pesquisa (PSR), com sede em Ramallah, na Cisjordânia.
Cerca de um terço dos palestinos que vivem nos territórios ocupados (33%) e dos judeus israelenses (34%) apoiavam a solução de dois Estados em dezembro de 2022, momento em que a pesquisa foi feita. Não há dados mais recentes disponíveis.
A proposta tinha apoio majoritário na década passada, mas perdeu popularidade com o passar dos anos. Em 2016, apoiavam a solução de dois Estados 51% dos palestinos e 53% dos judeus israelenses.
A pesquisa também mediu a opinião desses grupos sobre duas propostas alternativas para o futuro da região. Defendem a criação de um único Estado sem direitos iguais para o outro lado 30% dos palestinos e 37% dos judeus israelenses. Já o apoio a um único Estado democrático com direitos iguais para todos alcança 23% dos palestinos e 20% dos judeus israelenses.
O grupo mais simpático à solução de dois Estados são os palestinos com cidadania israelense, também conhecidos como árabes-israelenses (60%); no outro extremo, o grupo menos favorável ao plano são os colonos israelenses na Cisjordânia (15%). Como um todo, 39% dos cidadãos de Israel apoiam a medida.
A ideia de dividir a região localizada entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo em um Estado para judeus e outro para árabes não é novidade. Em 1947, um ano antes da fundação de Israel, a Assembleia-Geral da ONU aprovou a partilha da Palestina, então sob mandato britânico. Não houve consulta à população local, e o plano não se concretizou.
A proposta ganhou novo fôlego em 1993, quando os Acordos de Oslo criaram a Autoridade Nacional Palestina (ANP), espécie de governo transitório que deveria ser sucedido por um Estado palestino na Cisjordânia, em Jerusalém Oriental e na Faixa de Gaza, territórios sob ocupação militar de Israel desde 1967.
O plano, mais uma vez, não virou realidade. Tel Aviv expandiu a presença de colonos nos territórios ocupados e, desde então, há registros de aumento na violência contra os palestinos, o que inclui restrições de movimento, encarceramento em massa e assassinatos.
Hoje, a ANP tem atuação limitada em cerca de 40% da Cisjordânia e é amplamente vista como uma entidade corrupta, autoritária e ineficiente. Seu presidente, Mahmoud Abbas, foi eleito em 2005 para um mandato de quatro anos que se estende até hoje.
Já a Faixa de Gaza é governada pelo grupo terrorista Hamas sob bloqueio israelense e egípcio desde 2007. Após os ataques terroristas de 7 de outubro, Tel Aviv invadiu o território com o objetivo de depor a facção.
O escritor Majd Kayyal, analista do think tank Al-Shabaka, diz que os palestinos enfrentam uma fragmentação profunda. Alguns, como ele próprio, têm cidadania israelense, enquanto outros vivem sob lei marcial nos territórios ocupados —há ainda os que estão na diáspora.
“O objetivo dessa separação é destruir a sociedade palestina. Criam-se diferentes realidades, diferentes economias e diferentes movimentos políticos para manter a dominação brutal do colonialismo”, diz.
Para Kayyal, essa lógica de fragmentação é desafiada pelo slogan “Palestina livre do rio ao mar”, cunhado pelo movimento nacional palestino nos anos 1960. “Essa frase sugere que a liberdade só pode ser alcançada por meio da unidade do povo palestino em toda a nossa terra histórica”, afirma.
O slogan se tornou alvo de controvérsias e acusações de antissemitismo desde os ataques do Hamas no mês passado. Críticos dizem que a frase sugere a extinção de Israel e incita um genocídio contra os judeus.
A Câmara dos Estados Unidos, por exemplo, aprovou uma moção de reprimenda contra a deputada democrata Rashida Tlaib, única representante de origem palestina na Casa, após ela usar a frase. Na Alemanha, o slogan foi proibido pelas autoridades.
Para Michel Gherman, assessor acadêmico do Instituto Brasil-Israel (IBI) e professor de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a frase “do rio ao mar” não necessariamente tem conotação antissemita.
“Você tem que perguntar para as várias pessoas que usam esse slogan qual é a intenção delas ao usá-lo. Se a intenção for que nos territórios ocupados de 1967 as pessoas possam viver livremente, não há antissemitismo. Agora, se a intencionalidade for a substituição das pessoas que vivem em Israel por outras, aí sim a frase assume um caráter de genocídio”, afirma.
Para Gherman, o slogan palestino ajuda a produzir a noção de que a única solução viável é a solução de um Estado. Do outro lado, diz o professor, também existe um esforço da direita sionista em decretar o fim da solução de dois Estados.
Em setembro, o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, fez um discurso na Assembleia-Geral da ONU em que exibiu um mapa do “novo Oriente Médio”. Nele, as fronteiras de Israel se estendem do rio ao mar, sem distinção dos territórios palestinos e das colinas de Golã, território sírio que também é ocupado por Tel Aviv desde 1967.
“Mesmo com esse trabalho de desacreditação da solução de dois Estados, um terço da população dos dois lados continua apoiando a proposta”, diz Gherman, referindo-se aos resultados da pesquisa feita em dezembro do ano passado como um sinal de “desesperança”.
Ele acredita que o apoio público ao plano aumentou após o 7 de Outubro. “A situação hoje exige o fim da ocupação e a criação de dois Estados vivendo em paz, lado a lado, com segurança garantida. Mas eu não vejo fora do horizonte a possibilidade de uma solução criativa no sentido de uma federação árabe-israelense”, diz.
A refugiada Oula al-Saghir se opõe à ideia de dividir a região. Ela nasceu na Síria, para onde a família de seus pais fugiu em 1948. Mais de 750 mil palestinos foram expulsos e tiveram suas posses expropriadas no território onde Israel viria a se estabelecer naquele ano, em um êxodo que ficou conhecido como Nakba (catástrofe, em árabe).
Em 2015, após a eclosão da guerra civil na Síria, Al-Saghir tornou-se duplamente refugiada ao fugir para o Brasil com o marido e os dois filhos. Em solo brasileiro, resgatou a paixão do pai pela música e virou cantora, e a família obteve nacionalidade brasileira.
Ela diz esperar que um dia os refugiados possam retornar à Palestina. “Gostaria de conhecer a cidade dos meus pais. Não sei se eu me mudaria para lá. Nunca pude ir, não conheço como é a vida, o clima, a comida. É algo que só existe no meu sonho.”
Al-Saghir defende a criação de um Estado do rio ao mar e diz acreditar que os judeus ficariam em paz se aceitassem viver sob um governo palestino.
O ativista Jeff Halper, diretor do Comitê Israelense Contra a Demolição de Casas (Icahd) e cofundador da Campanha por Um Estado Democrático (OSDC), diz que cabe aos palestinos definir os termos de seu projeto de nação. Na sociedade israelense, por sua vez, Halper aponta uma contradição. Segundo ele, Israel pretende ser um Estado democrático com maioria judaica ao mesmo tempo em que exerce controle sobre toda a população da região, o que, em sua visão, resulta na imposição de um apartheid contra os palestinos.
“Assim como cidadãos de outros países, os israelenses não são muito politizados e só querem levar uma vida normal. Desconhecem o histórico de deslocamento e desapropriação imposto aos palestinos, ignoram os assentamentos na Cisjordânia e culpam ‘os árabes’ por forçá-los a lutar. Não se dão conta de que vivem em um sistema colonial”, diz.
Procurada, a Embaixada de Israel no Brasil afirma que o país busca repetidamente negociar com os palestinos, que não aceitam as soluções apresentadas ou não desejam negociar. “O Estado de Israel apoia a solução de dois Estados e deseja viver em paz e cooperar com seus vizinhos. Vemos isso, por exemplo, com os Acordos de Abraão. É claro, detalhes sobre as especificidades de um acordo de dois Estados precisarão ser negociados e debatidos com a segurança em mente”, diz a representação diplomática em nota enviada à Folha.
A Embaixada da Palestina no Brasil também foi procurada pela reportagem, mas não se pronunciou até a publicação deste texto.