O ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, vive neste domingo seu “momento Malvinas” com o plebiscito em que buscará o apoio popular para dizer que quase dois terços do território da vizinha Guiana pertencem a Caracas.
A analogia é irresistível, ainda que guarde diversas diferenças com a invasão das ilhas Falkland, as Malvinas, pela carcomida ditadura argentina em 1982. Naquela ocasião, a guerra de dois meses acabou vencida pelos donos do local desde 1833, os britânicos.
Agora, Maduro joga com o temor de um conflito regional mais do que com a possibilidade de ele ocorrer, repetindo o que já fez antes com a Colômbia. Mas a situação é tensa, e diplomatas com experiência na região não desconsideram que o ditador no poder desde 2013 não possa fazer o que descrevem candidamente como “uma loucura”.
No caso, um ação militar contra Essequibo, o rico naco da Guiana que está na mira venezuelana. Não é uma disputa nova, porém renovada. Caracas quer o território, pouco maior que o Acre, desde que ficou independente da Espanha no século 19.
Em 1899, uma corte de arbitragem baseada em Paris decidiu que o território era britânico, herdado da Holanda, numa daquelas situações de partilha coloniais típicas da época. Quase 50 anos depois, a Venezuela alegou que o laudo final era uma fraude e partiu para uma campanha pela tomada de Essequibo.
Quase conseguiu resultado em 1966, quando o Reino Unido estava em pleno processo de desmantelamento de seu antigo império. Londres topou conversar sobre as fronteiras no chamado Acordo de Genebra, no qual a Venezuela dizia renegar o laudo de 1899. Este não foi rasgado, como diz a propaganda de Maduro, contudo.
Anos se passaram sem solução, até que o dinheiro falou mais alto, quando em 2015 a petroleira americana ExxonMobil achou campos vasos de hidrocarbonetos no litoral de Essequibo. Não é pouco: as reservas estimadas quase equivalem às do Brasil.
Várias riquezas já haviam sido prospectadas na região, como urânio e ouro, mas petróleo em mar aberto era uma novidade distante dos obstáculos de exploração na mata fechada em que consiste quase todo o território.
Maduro havia assumido o poder dois anos antes, depois da morte de seu mentor, Hugo Chávez (1954-2013), e ainda estava a dois anos de virar um ditador e subverter o Legislativo com sua Assembleia Constituinte. Agora, retoma o tema de Essequibo após a Corte Internacional de Justiça, também conhecida como Corte de Haia —ironicamente, na Holanda—, reafirmar sua jurisdição delegada pela ONU sobre a disputa.
A Guiana se mexeu, pedindo auxílio ao Departamento de Estado americano e, com isso, reforçando o discurso venezuelano de interferência de Washington na região. O motivo é mais prosaico, para além da presença da ExxonMobil e outras: Georgetown não tem Forças Armadas de fato, mas um efetivo policialesco de 3.400 homens.
Eles não seriam páreos para uma invasão, caso ela ocorresse, dadas as capacidades militares venezuelanas, por decadente que o Estado esteja. Aí entram implicações geopolíticas, não só envolvendo os EUA, mas também o Brasil.
O governo Lula (PT) é um aliado histórico da ditadura esquerdista chavista. Mas o Itamaraty vê com reservas as ideias expansionistas de Maduro, e tem trabalhado para pedir uma solução negociada, nas bases reais do acordo de 1966 —e não na leitura livre que Caracas faz dele, que supõe soberania reconhecida.
Politicamente, é um nó para o Planalto, dada a simpatia do PT e da esquerda em geral em relação a Caracas, que de todo modo era bem mais genuína sob Chávez. Há o temor real, em parte do corpo diplomático, de que Maduro possa ir às vias de fato se o plebiscito confirmar o previsto: um “sim” às cinco perguntas do governo sobre Essequibo.
Tanto é assim que Caracas chama o voto de “referendo consultivo”, como se ele tratasse de um fato consumado. É mais um item da tal guerra narrativa, como diz o chavão, amplificada por Caracas. As questões todas partem do pressuposto que Essequibo é venezuelano e que a posição da Guiana é ilegal.
A visão majoritária entre diplomatas, contudo, é de que Maduro ficará na farsa com as suas Malvinas. O custo de uma ação militar, como foi para os argentinos em 1982, é impagável, e ele não tem o apoio nem da aliada Cuba para tomar Essequibo à força.
Isso dito, o Brasil está atento, e o Ministério da Defesa deu seu recado quando disse que reforçaria sua fronteira norte dada a instabilidade. É retórica, mas a mensagem foi ouvida segundo militares com contatos em Caracas.
Afinal de contas, uma eventual guerra não só aumentaria o fluxo de 400 refugiados diários que vêm da Venezuela a Roraima, como poderia envolver as fronteiras brasileiras, dada a impossibilidade de um ataque terrestre a Essequibo. Nada disso é provável, até pela proximidade entre Lula e Caracas.
Resta a autodeterminação, essa palavra surrada. Segundo relatos colhidos por agências de notícias na região nesta semana, moradores do território se sentem à margem do Estado, mas notam a mudança que o dinheiro do petróleo traz.
A exploração inicial começou em 2019 e, passado o tombo global da pandemia, o biênio 2021-2022 viu um aumento de 62% no PIB (Produto Interno Bruto) da Guiana, uma enormidade segundo o Banco Mundial. Se o dinheiro chegará à ponta é uma questão à parte, mas o volume sugere a possibilidade de melhoria de vida sem necessidade de sonhos separatistas —até porque a Venezuela é um Estado em processo de falência em vários aspectos.
Os cerca de 21 milhões de venezuelanos aptos a votar deverão apoiar a retórica de Maduro, que está sob intensa pressão doméstica e internacional para permitir um pleito de 2024 mais livre no país —mesmo sua principal concorrente, María Corina Machado, está impedida de concorrer.
A corte de Haia não proibiu a realização da consulta, mas alertou na sexta (1º) contra qualquer mudança do status fronteiriço sem sua aprovação.
Um diplomata russo com larga experiência na relação com Caracas aposta que o ditador apenas quer se cacifar, por saber que Essequibo, como as Malvinas, é uma questão unificadora nacional. As semelhanças de tom são gritantes, com o mapa da Venezuela incluindo mais da metade do vizinho sendo centrais na propaganda, assim como as ilhas na costa argentina são desenhadas nos ônibus de Buenos Aires.
A Rússia, por sinal, quer distância do processo a priori, ciosa das acusações de que está buscando incomodar os EUA em seu quintal. Declarações em favor de Maduro serão esperadas, até porque Vladimir Putin tem poucos amigos públicos no mundo hoje, mas envio de armas e auxílio eventual em caso de guerra parecem improváveis.
Cronologia
1811 – Venezuela se torna independente da Espanha
1814 – Tratado anglo-holandês garante ao Reino Unido posse sobre terras que pertenciam à Holanda, incluindo a margem ocidental do rio Essequibo
1831 – Nasce a Guiana Inglesa
1899 – Laudo de árbitros internacionais em Paris decreta soberania da Guiana Inglesa sobre Essequibo
1948 – Venezuela diz que laudo foi fraudulento e começa campanha para tomar Essequibo
1966 – Ambíguo, Acordo de Genebra anula laudo de 1899, mas mantém Essequibo sob administração guianesa até solução definitiva. Guiana se torna independente meses depois
1990 – ONU inicia missão sobre o caso
2015 – Após acordo com Guiana, Exxo Mobil inicia prospecção petroleira nas águas do Essequibo, anunciando reservas a 190 km do litoral. Venezuela reage
2018 – ONU indica a Corte Internacional de Justiça como fórum para decidir a disputa
2019 – Começa a exploração de petróleo no litoral. PIB da Guiana dispara nos anos seguintes
2023 – Corte internacional rejeita queixa da Venezuela e reafirma jurisdição sobre o caso. Caracas marca plebiscito sobre anexação para 3 de janeiros, sob protestos da ONU