[RESUMO] Fundamental para o estudo da mulher no islã, o livro “Sultanas Esquecidas”, da marroquina Fatima Mernissi, reúne exemplos de inúmeras lideranças femininas excluídas dos registros históricos de seus países. Além desse resgate, a obra de Mernissi, ainda pouco conhecida no Brasil, rompe visões preconceituosas ao apresentar as bases de um feminismo islâmico, recorrendo ao Alcorão e aos ensinamentos de Maomé para defender as mulheres.
Com a vitória de Benazir Bhutto nas eleições paquistanesas de 1988, líderes religiosos estrebucharam. Disseram que era impensável uma mulher governar um país de maioria muçulmana. Não havia precedente.
Mas havia. A intelectual marroquina Fatima Mernissi mostrou isso dois anos depois, em 1990, com a publicação de “Sultanas Esquecidas”. O livro reúne exemplos históricos de líderes mulheres no islã.
São personagens como Aicha, uma das esposas do profeta Maomé, que já no século 7 liderou uma batalha montada em um camelo. Há também Chajarar al-Durr, que no século 13 foi crucial para interromper o avanço das Cruzadas.
Esse livro, fundamental para o feminismo islâmico, passou batido pelo Brasil. Só agora chegou ao português pela editora Tabla. A tradução é de Marília Scalzo, do original francês.
Está corrigido o atraso bibliográfico. Há ainda, porém, muito a ser publicado e compreendido sobre as mulheres no islã. De Mernissi, só um outro livro saiu em português. A Companhia das Letras publicou seu “Sonhos de Transgressão” em 1996.
É uma carência incômoda. Mernissi influenciou toda uma geração de pensadores no mundo de cultura islâmica. É impensável estudar a situação da mulher no Oriente Médio e Norte da África sem seu trabalho.
Ainda mais porque a posição da mulher no islã é uma obsessão de muita gente de fora da região, que usa esse tema como uma espécie de indicador de civilização (ou de seu oposto, a barbárie).
Mernissi nasceu em 1940 em Fez, uma das capitais intelectuais do Marrocos. Estudou na França e nos Estados Unidos. Publicou em 1975 seu primeiro livro, “Beyond the Veil” (para além do véu). Morreu em 2015.
Um dos diferenciais de sua obra é o fato de que ela fala de dentro da religião, a partir da própria experiência. No passado, quem tinha a voz eram os estrangeiros orientalistas (os que estudavam o dito Oriente). No máximo, homens muçulmanos escreviam.
É também notável como Mernissi usa as armas dos conservadores muçulmanos ao discordar deles. Recorre aos textos fundamentais do islã, como o Alcorão e os ensinamentos de Maomé, para defender as mulheres.
Basta espiar a lista de referências no final de “Sultanas Esquecidas”. Estão ali diversos dos pensadores medievais do islã, gente como Ibn Khaldun, Tabari e Ghazali, que ela incorpora ao texto.
Essa estratégia tem muito mais impacto do que apelar para valores supostamente universais de outras culturas. Líderes islâmicos não podem dizer que a escritora está importando ideias. Ela usa em vez disso fontes intrínsecas.
Mernissi mostra com isso que o islã apresenta desde seu início, no século 7º, as ferramentas para a inclusão das mulheres. Essa religião inclusive trouxe avanços em áreas como herança e direito à propriedade, em relação às normas da época.
“Precisamos parar de demonizar o islã”, diz Francirosy Campos Barbosa. Professora da USP de Ribeirão Preto, ela é uma das grandes especialistas em islã e gênero no Brasil. Sua formação intelectual foi moldada por autoras como Mernissi. “Quem oprime as mulheres é o patriarcado, e não a religião”, afirma.
Ou seja, o problema não é o que o Alcorão diz sobre as mulheres, mas como os homens interpretaram e impuseram a mensagem do texto sagrado. O que também aconteceu, diga-se de passagem, com a Bíblia no cristianismo.
No caso islâmico, é irônico que uma das pessoas responsáveis por compilar os “hadith” tenha sido Aicha, uma das esposas de Maomé. Os “hadith” são os ditos e atos do profeta que servem de base para a crença islâmica.
Séculos de interpretação desses textos acabaram servindo de arma para a opressão das mulheres, de modo que hoje não há a possibilidade de uma liderança religiosa feminina no islã (como, vale notar, em diversas outras fés).
Francirosy conta que conheceu Mernissi por sugestão de sua orientadora, Sylvia Caiuby Novaes. Garimpou a obra da marroquina e se entusiasmou quando “Sonhos de Transgressão” chegou ao país, em 1996.
Em seguida, contatou editoras e repassou a elas uma lista com as demais obras de Mernissi e de outras pensadoras do islã, para integrarem o catálogo. Não funcionou. A grande maioria desses trabalhos seguem inéditos em língua portuguesa.
Isso é um grande problema para quem, como Francirosy, lida com salas de aula. A professora diz que peleja para indicar leituras aos alunos que às vezes não dominam o inglês ou o francês para ler Mernissi na edição original.
Esse mesmo problema ainda afeta pessoas que, como Francirosy, decidiram se converter ao islã no Brasil e buscaram se informar sobre essa fé. “As pessoas não conhecem o islã, então ficam no feijão com arroz, no beabá.”
Foi no exterior que aprendeu muito sobre a religião, conta. Chegou a fazer em Granada, na Espanha, um curso de “ijtihad” —a ciência da interpretação religiosa.
A professora Muna Omran, que leciona na Pontifícia Universidade Católica do Paraná, diz que, como Francirosy, também pena para recomendar leituras aos alunos.
“Nossa maior dificuldade é a falta de tradução”, afirma. Muitas vezes teve de mudar o programa de um curso por não ter os textos fundamentais em português. “Isso reforça os discursos contra o islã, e vence o exotismo.”
Omran ouviu falar de Mernissi durante um congresso. Chamou sua atenção o fato de que a marroquina dava voz aos não privilegiados. A mistura de gênero, classe e raça —abordagem que hoje chamamos de “interseccional”— lhe atraiu.
A professora cita uma série de outras autoras que se beneficiariam de um programa mais sistemático de traduções, como Assia Djebar, Samar Yazbek, Sahar Khalife e Fadwa Tuqan.
O que essas pensadoras têm em comum é que suas obras constroem outras visões de feminismo, distintas daquelas versões engessadas que costumam circular em países europeus, nos Estados Unidos e também no Brasil.
“Mernissi propõe que a gente pense em um feminismo voltado a sociedades islâmicas”, diz Clarice Safo, que faz doutorado em estudos da linguagem na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Autoras como Mernissi partem de conceitos como o do feminismo, atrelados ao dito Ocidente, e os transformam. Afinal, Safo afirma, “cada grupo de mulheres é plural, é subjetivo e tem as suas próprias demandas”.
Em outras palavras, não basta trazer uma ideia formada na Europa e nos Estados Unidos, sob a égide do cristianismo, e tentar forçá-la dentro de uma sociedade de outra cultura. É preciso deixar conceitos se transformarem.
Um dos temas que Safo pesquisa é justamente a relação entre o conteúdo do Alcorão e a construção de um feminismo islâmico dentro do Marrocos. “O debate é esse: como trazer o texto para reivindicar pautas da sociedade.”
Não é só o feminismo que varia de acordo com o tempo e o local, aliás. A própria ideia do significado do islã é mutável, apesar do que dizem os fundamentalistas, que pregam um retorno a uma suposta mensagem original.
“O islã tem as suas diretrizes básicas, mas é uma religião plural”, diz Francirosy. Não existe uma autoridade central equivalente ao papa do catolicismo. E, quando a fé se esbarra na cultura, ela afirma, “vai dando esse colorido”.
“As pessoas no Brasil têm um preconceito muito grande sobre as mulheres no islã, e não adianta a gente dizer que o islã é plural”, afirma Omran, na mesma linha. “Isso contribui para a islamofobia e para o orientalismo rasteiro.”
Francirosy tem se dedicado ao estudo da islamofobia no Brasil, isso é, a discriminação contra os praticantes do islã. Notou, nestes últimos anos, que as primeiras vítimas são as mulheres, alvos de preconceitos simplistas.
Uma das razões é o fato de que nelas a religião costuma se fazer mais visível do que nos homens: aparece, por exemplo, na decisão de cobrir o cabelo. “A questão é que sentido essa mulher dá para o seu véu, e não o fato de que ela o veste.”
Há, sim, mulheres forçadas a se cobrir e que lutam para poder se desvelar. Mas existem também aquelas que escolhem e se orgulham do lenço. Tentativas de forçar uma ou outra coisa são imposições.
O livro de Mernissi trata dessas questões. Sua linguagem mistura a erudição com a ironia, deixando o texto leve. Por exemplo, diz na introdução que gostaria de ser uma “muçulmana obediente”.
As histórias de mulheres no islã contribuem para o prazer da leitura. É o caso da mãe do califa al-Muqtadir. Foi ela quem governou Bagdá, por detrás dos panos, no século 9º, entre intrigas palacianas.
Mernissi conta, também, a história da escravizada Hababa. Teria morrido engasgada com uma semente de romã entre duas canções. O califa Yazid, que a amava, ficou tão triste que morreu logo depois.
Ambas foram apagadas da história, assim como outras líderes do mundo de cultura islâmica, entre elas Chajarar al-Durr. O tempo abafou também o protagonismo das esposas do profeta.
A tradução de “Sultanas Esquecidas” chega, apesar do atraso, para ajudar com que os leitores no Brasil não se esqueçam, por sua vez, do pensamento revolucionário da marroquina Mernissi —que igualmente periga sumir.